“O Brasil ainda é um país com grande possibilidade de expandir o emprego”

Marcio Pochmann – professor do Instituto de Economia da Unicamp, presidente do Instituto Lula

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Marcio Pochmann é um dos organizadores do livro recém-lançado A Devastação do Trabalho, e conversou com o Blog da Conjuntura Econômica sobre sua percepção do atual momento do emprego no Brasil:

Em 2020, as medidas de transferência de renda (auxílio emergencial) e manutenção do emprego (BEm) contiveram o aumento da taxa de desemprego, que poderia ter sido maior que o registrado. Qual sua estimativa para 2021?

O que vivemos em 2020 foi uma intervenção que destoa da trajetória da política econômica, social e do trabalho com o governo Temer e mesmo com Bolsonaro até 2019. No meu modo de ver, 2020 pareceu uma espécie de cavalo de pau, porque até o início primeiro trimestre de 2020 não havia recursos para praticamente nada. Com toda a ideia da austeridade fiscal, do enfrentamento do déficit público, cumprimento da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos), não havia recursos para enfrentar o problema do desmatamento na Amazônia, do aumento dos moradores de rua, da fome etc. Mas a pandemia levou a uma espécie de reviravolta na política econômica, porque de onde não havia dinheiro de repente o Banco Central libera R$ 1,3 bilhão para o sistema financeiro, e 13% da população brasileira foi incorporada em programas de garantia de renda. Em 2019, 27% da população brasileira dependiam de algum recurso do orçamento público federal; em 2020, passamos para 40%. Houve uma decisão que me pareceu importante, abandonou-se naquele momento a preocupação com a austeridade fiscal, embora não se desmobilizassem os instrumentos institucionais existentes para isso. Houve uma invenção criativa que foi a criação de um orçamento de guerra, um segundo orçamento, que permitiu uma série de iniciativas que entendo que sem elas talvez tivéssemos uma queda no nível de atividade duas vezes maior – instituições como a OCDE previam uma queda do PIB brasileiro próxima de 10%. Então essas medidas foram importantes, mas ao que tudo indica ficarão registradas como pertencentes ao ano de 2020. Talvez em 2021 é que sentiremos de fato as consequências que poderiam ter sido sentidas em 2020.

Em conversa recente com o Blog da Conjuntura Econômica, o presidente do Instituto Locomotiva Renato Meireles estimou que no ano passado 3,5 milhões de pessoas se somaram ao grupo que recebe alguma renda por aplicativo, totalizando 21,5 milhões no Brasil. Considera possível regular essas atividades para evitar uma deterioração do mercado de trabalho?

Esse tipo de trabalho não parece ser diferente do que era a realidade do trabalho pré-1930. Embora tenhamos a CLT, e apesar das mudanças que ocorreram com a reforma trabalhista de 2017, há tem um determinado segmento de assalariados do mercado de trabalho, que foi se desenvolvendo pela própria modificação tecnológica, pela expansão do setor terciário, que quase não tem regulação. É uma regulação comercial mais que trabalhista. A meu ver, enquanto houver um excedente tão grande de força de trabalho, esse segmento mencionado dificilmente vai ser regulamentado. Porque qualquer iniciativa de regulação significa impor determinadas condições que podem limitar a oferta. Hoje temos um desemprego alto – certamente muito maior do que o que o IBGE apresenta, porque a metodologia do IBGE, embora não esteja errada, de certa maneira olha mais a ocupação e menos a desocupação. Então a pessoa que porventura faça qualquer bico para sobreviver, o IBGE vê como ocupação, que é um pouco a formulação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), então isso esconde a situação do desemprego. É o que o IBGE revela como trabalhadores subocupados. É alguém que consegue alguma renda, num país sem muitas garantias para esses trabalhadores. É quase um luxo ser desempregado em um país que não oferece garantias. Eu posso ficar desempregado se tenho seguro desemprego. Se não tenho, preciso buscar qualquer coisa para viver, e essa qualquer coisa, em nossas estatísticas oficiais, é uma ocupação.

Sinceramente, acho que o Brasil ainda é um país com grande possibilidade de expandir o emprego. Não acredito que ele tenha acabado. Se dizia isso em meados dos anos 1990, que era o fim do emprego assalariado, o formal sobretudo, que todos seríamos consultores, empreendedores, PJs. Mas nos anos 2000 ocorreu o contrário, com a expansão do emprego assalariado. Não estou dizendo que repetiremos os anos 2000. Só digo que o Brasil é um país em construção. Falta de tudo. Não temos infraestrutura direito, não tem habitação. Temos uma série de situações que ainda dependem do trabalho humano. Não somos iguais a economias maduras como Europa, Japão, que possuem infraestrutura constituída e onde tudo depende dos serviços. De toda maneira, se tivermos possibilidade de voltar a crescer, dependendo de qual crescimento, vamos gerar emprego. Ao mesmo tempo, estamos com uma taxa de desaceleração da expansão da população. Então a população economicamente ativa (PEA) vem em um movimento de decrescimento, o que ajudará a reduzir um pouco essa pressão.

Mas as estimativas no curto prazo são de manutenção de uma taxa de desemprego alta – o Boletim Macro do FGV IBRE estima uma taxa média de 15,3% em 2021...

Temos um estoque inegável de pessoas sobrantes. E, da segunda metade da década passada para cá, também tivemos uma massa de jovens praticamente perdida. O Brasil perdeu a possibilidade de gerar emprego para essa gente. Uns decidiram fugir do Brasil, a chamada fuga de cérebros, outros são nem-nem, são várias realidades. O que fazer com essa massa? Acho que é preciso combinar crescimento econômico com uma forma de regulação que não interrompa a possibilidade de emprego por plataforma, que é uma realidade. Não se trata de coibi-lo, mas de reorganizá-lo, para que funcione de forma adequada e de certa maneira prevaleça a competição, não da forma como parece existir. Mas também acho que o Brasil precisa de medidas que atuem sobre a inatividade. Precisamos pensar que estamos numa mudança demográfica, e que as pessoas estão vivendo mais. Em 2020, 2021 haverá uma queda na expectativa de vida em função da pandemia – tivemos 8% a mais de mortos em 2020 do que no ano anterior. Mas isso é pontual, e tudo indica que seguiremos com aumento da taxa de expectativa média de vida.

Ao mesmo tempo, temos que olhar para a capacitação. Não dá mais para imaginar formação fora do local de trabalho. A partir dos anos 1940, desenvolveu-se o Sistema S, que foi importante para o Brasil industrial. Mas acho que para este novo Brasil de que estamos falando é preciso outro sistema, que promova uma formação dentro do local de trabalho, que aproxime os trabalhadores da realidade do mercado. Então, temos que repensar a parte da formação, temos que repensar da contratação, e também dos direitos. Penso que, nessa sociedade que se diz também do conhecimento, é necessário que as pessoas ingressem no mercado de trabalho com o ensino superior completo. Precisamos ampliar formas de que as pessoas tenham condições de financiar essa formação.

Considera a ideia do governo de buscar alternativas para financiar a desoneraração da folha um caminho adequado para se recuperar o emprego formal?

É sempre difícil comentar sobre uma medida específica. Percebemos que nos últimos cinco anos houve uma alteração drástica do custo do trabalho no Brasil. Até 2014, o Brasil tinha um custo do trabalho horário na indústria que era quase duas vezes maior que o custo do trabalho horário na indústria chinesa. Hoje, na China, esse custo é muito maior do que aqui. No Brasil houve uma opção por redução do custo do trabalho porque se achava que seria a melhor maneira de estimular o emprego, melhorar a competitividade etc. A consequência disso foi a retirada de renda das famílias trabalhadoras. Ao optar por essa forma de geração de empregos, reduzindo custo de contratação, levou-se na verdade a um enfraquecimento do mercado de trabalho, portanto do consumo. A consequência é que o Brasil não consegue voltar a crescer porque não tem consumo. As empresas operam com alta capacidade ociosa – no primeiro trimestre de 2020, o PIB já havia sido negativo. Estamos falando de uma economia sem dinamismo – só se acharmos que o Brasil poderá voltar a crescer via exportações. Porque, se não for pelas exportações, seria pelo investimento. Mas o que estamos vendo nos últimos três anos é uma fuga de capital – e agora não só de capital, mas de empresas também. Isso significa desinvestimento. Então de onde poderia vir o vetor de crescimento? Obviamente o mercado interno, a meu modo de ver. Mas se você esvazia o custo do trabalho, significa menos salário, menos consumo. É o círculo inverso.

De que frente considera que se poderia iniciar uma revitalização do sistema sindical?

Em um país democrático, é fundamental que existam instituições, e os sindicatos fazem parte delas. E da mesma forma que houve um tipo de organização sindical antes de 1930, e outro depois, deveremos ter mudanças agora. O que estamos vendo hoje guarda alguma relação com o trabalho na sociedade agrária, em que as pessoas trabalhavam na fazenda, onde moravam. Nessa época, não tinha de forma tão explicita a divisão entre o trabalho de produção (fora de casa) e reprodução (dentro de casa, de cuidados). A separação de ambos está relacionada ao trabalho urbano, especialmente o industrial. Nesse sentido, o que acontece é que apenas e tão somente o trabalho de produção foi reconhecido, calculado, passa a fazer parte do cálculo do PIB. É o trabalho que nos dá direitos. Podemos lavar louça em casa durante 40 anos e não vamos nos aposentar; mas se fizermos isso num bar, num restaurante, muda tudo. E também o que criou uma desigualdade de gênero, pois de maneira geral o trabalho de reprodução é tão importante quanto o de produção, mas não é representado.

Na sociedade de serviços, estamos percebendo que é crescente a tendência do trabalho em casa. Os bancários assinaram um acordo nacional com os bancos, disciplinado como será o trabalho em casa, outras categorias também o fizeram. A questão é: como separar esses dois trabalhos hoje? Pois atualmente posso preparar uma aula e cuidar da comida, das crianças. O trabalho em casa supõe outro tipo de representação que o sindicalismo que temos hoje não está preparado para lidar. E é um problema seríssimo. Veja, há registros que mostram o aumento da violência doméstica. Obviamente há muitas razões para isso, mas uma delas é a de os adultos permanecerem mais tempo em casa, o que pode significar que as condições da casa podem não ser adequadas para o exercício do trabalho, pois anteriormente a casa era basicamente era um dormitório. Isso também está suscitando o surgimento de doenças, o que precisa ser estudado.

No livro que lançamos recentemente, há pesquisas com educadores sobre a intensidade do trabalho que, por exemplo, apontam a um acréscimo nas horas trabalhadas. Então tem questões novas que estão vinculadas ao exercício do trabalho em casa, um mundo novo pouco conhecido esperando formas de organização, identificação, regulação, que acho que é um espaço para o sindicato. E é preciso que eles se deem conta. Olhar não só para a derrota, com a perda de recursos depois da reforma trabalhista de 2017, mas para a necessidade de se reinventar diante dessa nova realidade.

O livro A Devastação do Trabalho conta com análises de várias experiências de trabalho na pandemia – dos professores, o teletrabalho, o emprego de plataforma, o home office dos bancários, profissionais do turismo, e a experiência das mulheres, entre outros. Qual mensagem se pode tirar?

O livro é uma construção coletiva que envolveu quase três dezenas de estudiosos de diferentes universidades, estados, e o objetivo foi registrar o que foi a situação do trabalho em 2020, tendo em vista a questão da pandemia. De certa forma, é uma reflexão sobre a atualidade do trabalho no Brasil. Ele reúne diferentes pesquisas que foram feitas olhando as especificidades de cada categoria, e tentando entender o movimento mais geral do que vem ocorrendo no que a gente denomina de sistema corporativo de relações de trabalho. É um debate para quem está estudando, mas diria, sem falsa modéstia, que também é uma contribuição aos gestores públicos. Quem está preocupado com a centralidade do trabalho, e sobretudo pela ausência dele.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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