“No saneamento, estamos assistindo a uma transformação também no que diz respeito aos operadores”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Luciene Machado, chefe de departamento na Área de Estruturação de Parcerias de Investimento do BNDES, participará no dia 14/10 do webinar Diagnóstico e Perspectivas para o Saneamento no Brasil. O evento marcará a apresentação do FGV Datasan, nova ferramenta do FGV IBRE e Interáguas de acesso a indicadores atualizados do setor, séries históricas e comparativos de desempenho.

Nesta conversa para o Blog, ela conta como tem sido o trabalho de modelagem de concessões para o saneamento liderado pelo BNDES.

Qual a participação do saneamento dentro da carteira de estruturação de concessões do banco?

A Área de Estruturação de Parcerias de Investimento – como é chamada a área de concessões e PPPs do banco – nunca esteve mais ativa. No fundo, é um mandato que o BNDES já exerce há pouco mais de uma década, mas que ganhou um novo impulso. Saneamento talvez seja a vertente mais importante no plano subnacional, seguida por projetos em iluminação pública. A carteira do banco hoje conta com cerca de 150 projetos mandatados, que envolvem investimentos da ordem de R$ 250 bilhões. Os de saneamento somam em torno de 10, com mais ou menos R$ 80 bilhões em termos de Capex e outorgas potenciais ou que serão arrecadadas, numa área de cobertura onde vivem cerca de 40 milhões de pessoas. É um trabalho iniciado em 2016/17, que resultou nos primeiros leilões realizados no segundo semestre do ano passado, e que agora acontecem em um ritmo mais permanente. Desde o início, sempre buscamos incentivar a participação privada na lógica de blocos, de escala, o que com a edição do novo marco do saneamento se consolidou nos arranjos regionais. Já estávamos enquadrados nesse contexto porque acreditamos que só com soluções de escala poderemos universalizar o saneamento até 2033. Fazer concessões individuais, município a município, não é um arranjo positivo para os estados. Pois toda vez que um município superavitário faz concessão isolada, é sinal de que se perdeu uma oportunidade de incluir mais gente, e a lógica do “não vamos deixar ninguém para trás” fica dificultada. Então, a solução de escala é fundamental.

Quais os desafios para gerar esses arranjos regionais?

Há muitos desafios. Como a constituição e o novo marco consagraram a titularidade dos serviços como municipais, não é possível abrir mão do convencimento do município, e dos prefeitos, de que em arranjos regionais essa titularidade será exercida de forma compartilhada. É preciso criar estruturas de governança de cada bloco, trazer os prefeitos para esse exercício compartilhado de governança, para se chegar num arranjo de projeto que seja viável, atraia o privado, e seja exequível em um prazo curto de tempo.

Hoje a oferta da estruturação de concessões de saneamento do BNDES ainda não foi totalmente absorvida. Por quê?

Sim, realmente no momento temos mais capacidade de realizar projetos do que projetos para serem realizados. Isso acontece por um conjunto de fatores. Seria fechar os olhos dizer que uma estruturação de um projeto com esse tipo de alcance e mobilização está imune à realização dos ciclos políticos. Muitas vezes temos governadores em início de mandato convivendo com prefeitos em final de mandato, e então essa lógica de convencer prefeitos a aderirem a projetos dessa natureza fica prejudicada. Hoje vivemos o ciclo inverso: prefeitos chegando ao segundo ano de mandato e governadores no final de seu ciclo. Isso é bom do ponto de vista de acelerar projetos que estão na reta final, pois se aquele governador se empenhou na articulação, se tem desenhos bem montados, e temos uma boa modelagem para oferecer, o usual é que isso se acelere. Agora, para captação de novos projetos, é natural que não tenhamos o mesmo gás. Mesmo assim, temos vários municípios envolvidos, preocupados em montar essa base para quando o novo governo estadual venha, para que a gente nunca perca tração. É um desafio.

Como tem sido o diálogo com as empresas privadas? 

Para nós, que estruturamos projetos, é muito importante interagir com todos que participam do negócio: o cliente que nos contrata, os municípios, o regulador, e mais recentemente também ganhou destaque o papel do financiador/investidor. Sem dialogar com eles e entender as possibilidades, a gente de fato não consegue estruturar projetos atrativos como os que temos feito – temos tido leilões competitivos, com um conjunto de players de longo prazo e bem estruturados do setor participando. Se é leilão por outorga, estas têm sido substancialmente elevadas, o que mostra que de fato a percepção desses atores privados é de extrair muito valor daquela modelagem. E isso só é possível com esse diálogo permanente. 

No que diz respeito aos operadores, estamos assistindo a uma transformação no setor de saneamento. De um conjunto menor de operadores que vêm se expandindo ao capital estrangeiro que vem entrando como investidores dessas plataformas que já são os operadores nacionais. É um movimento bastante compreensível, dada a natureza local do saneamento. Imaginar que um investidor venha, do nada, cuidar de um negócio municipal, interagir com prefeitos, comunidades, é difícil. Pensávamos que isso pudesse acontecer em associações, mas acabou não acontecendo. Chegou o capital financeiro propriamente, e às vezes até o próprio estratégico entrou como sócio, como equity dos investidores do setor, e isso tem expandido a capacidade deles de participar dos leilões. Outro movimento que me parece interessante é o exemplo da adjudicação da Equatorial Energia no projeto do Amapá (a companhia venceu o leilão associada à SAM Ambiental, no início de setembro), que é uma tendência observada em outros países, de investidores que atuam em uma utility olhar para outras. Entendemos que esse movimento é favorecido por projetos de escala. Dificilmente uma empresa bem estabelecida em um segmento vai participar de pequenas concessões ou PPPs exclusivamente municipais. Porque ela tem uma base instalada, um custo de overhead de operação que dificilmente ela consegue ser competitiva em projetos de pequeno porte. No leilão do Amapá, também tivemos a presença da Cymi – grupo espanhol que também atua no setor de energia e fez uma proposta bastante competitiva.

Veja, se entendemos que para chegar nas metas de universalização é preciso investir, e que o parceiro privado é relevante por sua capacidade de operação e endividamento, confiar em poucos bolsos para realizar essa tarefa não é inteligente. É preciso ter um conjunto maior de players do que temos hoje, e isso é um objeto de grande atenção no banco, de eliminar barreiras para que tenhamos a formação de grupos, consórcios, joint ventures, que consigam participar mais intensamente.

Qual a perspectiva para o setor no curto prazo?

Há muita coisa que fazer no país. Muitos estados que ainda não aderiram a essa filosofia de regionalização de forma concreta (dados da Abcon/Sindicon apontam que apenas 15 estados já têm aprovadas leis que criam os mecanismos para a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico. O prazo é março de 2022). É um chamado de fato. E também aos municípios que entendem que não têm condições de prestar individualmente aquele serviço, mas que contam com um conjunto de municípios próximos que compartilham a mesma bacia ou têm a mesma estrutura física, inclusive de adução de água. O banco está disposto a sentar para conversar, e deixar claro os parâmetros em que uma concessão se tornaria viável.

Estamos trabalhando em vários projetos nessa transição de 2021 para 2022. Temos pelo menos dois leilões para acontecer ainda este ano: dos blocos B e C em Alagoas, e o bloco 3 no Rio de Janeiro, da Cedae, que não foi adjudicado no fim de abril. Neste caso, reestudamos o projeto, que antes incluía, além de parte da região oeste da capital, 6 municípios, passando agora para 18 municípios, cobrindo cerca de 3 milhões de pessoas. São municípios que ficaram sensibilizados pela oportunidade de participar de um processo regional. Eles sabem que agora perdem poder de decisão, que passa a ser do bloco, mas estarão sob um conjunto de regras mais uniforme, com o olhar do regulador para todos os municípios que compõem o bloco. Com isso, a supervisão dos investimentos privados é mais atenta. Isso é importante, pois não podemos ser ingênuos de achar que uma boa modelagem, um bom contrato e um bom operador fazem a mágica. É preciso o usuário cobrando seus direitos, e o regulador sendo a parte independente entre poder concedente e operador privado para dirimir questões, arbitrar, dar segurança na cobrança da tarifa. São muitas pontas para se chegar nas metas que pretendemos e prestar um bom serviço para a população.

Inscreva-se para o webinar Diagnóstico e Perspectivas para o Saneamento no Brasil

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir