Não há projeto de longo prazo para o país

Mauro Benevides Filho – Deputado federal (PDT-CE)

Por Claudio Conceição, de Fortaleza

Deputado federal, eleito em 2018, e coordenador do programa econômico do então candidato à Presidência Ciro Gomes, Mauro Filho tem tido uma forte atuação na Câmara, defendendo a retirada dos investimentos do teto dos gastos, o que para muitos é um sacrilégio. Formado em economia com PhD pela Universidade de Vanderbilt, nos EUA, foi por 12 vezes secretário de Fazenda do Ceará, onde imprimiu um severo controle, ajustando as contas do estado que é um dos poucos estados brasileiros em boa situação fiscal. Crítico de algumas ações do governo, alerta que o país não tem nenhum plano de longo prazo para a economia e para a área social e se o presidente não encarar a gravidade da pandemia do coronavírus, o país entrará em uma recessão difícil de mensurar.

(A entrevista foi realizada no dia 13 de março. Ante a propagação do coronavírus, o governo pode fazer alterações que impactem a questão fiscal)

Conjuntura Econômica — O senhor defende a retirada dos investimentos do teto dos gastos. Não seria uma medida imediatista, que comprometeria o futuro do teto como disciplinador de gastos?

O que é o teto dos gastos? É uma emenda constitucional federal, de número 95, que compreende que de 2014 para cá o Brasil sempre teve resultado primário negativo. Tradicionalmente, essa é uma conta que era positiva, de 2011 para frente foi decrescente, de tal maneira que em 2014 o Brasil experimentou o primeiro déficit primário sucessivamente. Ou seja, o Brasil não tem dinheiro suficiente para pagar pessoal, Previdência, custeio e investimento, que são as quatro categorias de despesa. Lembre-se que não estou falando de dívida pública, porque no passado o Brasil tinha superávit financeiro, mas não tinha dinheiro para pagar os juros, portanto a dívida cresceu aceleradamente, principalmente na relação dívida/PIB, que hoje chegou a 77%, o que para os países em desenvolvimento é um percentual elevado. Para os desenvolvidos não. Nos EUA eles devem 120% da sua dívida bruta como percentual do PIB. Japão 200%. Nos países que estão em processo de desenvolvimento esse percentual gira em torno de 50% a 70%. Então o Brasil tem que se comparar não somente com os emergentes, mas também com os avançados, e isso muitas vezes o mercado financeiro não compreende. O que acontece é que, com o passar dos anos, essa dívida foi crescendo velozmente. Esse é o problema. E isso assustou tanto investidores privados nacionais quanto internacionais, gerou desconfiança de que o Brasil poderia gerar default, fazendo o que a Argentina fez, não conseguindo honrar o pagamento de sua dívida pública. E aí o Brasil precisou tomar algumas medidas incluindo o teto de gastos em 2016.

Hoje dos 26 estados e Distrito Federal, diria que 21 estão em situação difícil. Agora é o seguinte: se não controlar pessoal e Previdência, não existirá Estado. Ele vai viver para pagar pessoal e Previdência. E o atendimento da saúde? Temos que encontrar um teto crível, mas não podemos abrir mão de que nosso foco como gestor público é ter dinheiro. Ninguém pode gastar aqui no estado R$ 150 mil com pessoal ativo, inativos e pensionistas e esquecer dos 9 milhões de cearenses que precisam dosetor público.

Mas o governo e vários economistas defendem que o país está cumprindo o teto.

Isso não é verdade. O teto de gastos diz que só posso aumentar minha despesa primária até o limite da inflação. Então se a inflação foi de 4,31%, só posso aumentar minha despesa em 4,31%. O que aconteceu? 2017, 2018 e 2019: o gasto com pessoal aumentando em termos reais. Previdência continua aumentando em termos reais. O custeio constante ou caindo um pouco. Mas se pessoal e Previdência continuam crescendo em termos reais, como o Brasil está dizendo que está cumprindo o teto? Ele está indo lá no investimento, que é a mola propulsora para o crescimento econômico, para a expansão do PIB, para a geração de emprego, vai lá e corta. Então cresce pessoal, Previdência, mantém o custeio constante, e aí, para dizer que está cumprindo o teto, corta o investimento.

Sem investimento não se consegue sair desse marasmo em que nos encontramos na atividade econômica...

Logico. O governo federal já chegou a investir R$ 104 bilhões ao ano. Vocês sabem quanto o governo federal vai investir este ano? R$ 19 bilhões. Não pode. O investimento público promove um efeito que nós economistas chamamos de crowding in, ele traz investimento privado para dentro. O Ceará investiu R$ 1,5 bilhão no Porto de Pecém, mas conseguimos trazer um investimento da siderúrgica de Pecém de R$ 20 bilhões. Esse efeito não pode ser esquecido, por isso defendo ter o controle efetivo do teto do gasto da despesa corrente para que sobre dinheiro sem descumprir o teto para fazer investimento.

No Brasil temos vários problemas. Um deles é a falta de avaliação do gasto público, e com isso jogamos muito dinheiro fora. O Ceará conseguiu implantar um sistema que colabora para o equilíbrio das suas contas. Quais ensinamentos o estado poderia passar para a União visando a uma melhor alocação do recurso público?

O Ceará já vem alguns anos com o entendimento de que ajuste fiscal não é um fim em si. Não posso controlar só para mostrar que receita é igual à despesa. Isso é um erro grave. Tem que se explicar à população o que é ajuste fiscal. Ajuste fiscal é você dotar o estado de ter condições financeiras de atender às demandas da população. Tenho que ter dinheiro para ampliar e melhorar o sistema educacional. Eu tenho que ter recursos para ampliar a eficiência do sistema de saúde. O estado expandiu muito o investimento em segurança pública. Então se você disser à população que ajuste fiscal é só corte, corte e corte, ninguém vai querer ouvir falar nisso. O primeiro ponto é explicar melhor para as pessoas por que fiscal controlado significa mais dinheiro para elas. Esse é o primeiro ponto, que o governo federal infelizmente não consegue fazer. Anuncia o primário, e o povo não sabe o que é isso. O povo quer saber se tem dinheiro para fazer estrada, ter mais estrutura de segurança pública. Então o primeiro ponto é saber traduzir isso melhor.

Segundo, essa cultura independente de governador – todo governador que entra, a gente vai lá e conversa. Porque aqui no Ceará secretário de estado não despacha com governador sobre custeio. Essa é a regra. Existe um comitê chamado Cogef, que é o comitê gestor de resultados e questão fiscal onde secretário submete a seus suplentes de custeio para esse comitê enquanto o governador discute políticas públicas. Ele discute investimento. Ele prioriza seu tempo de conversa, otimiza sua forma de agir. Esse controle tem sido muito específico para poder fazer com que o estado se transformasse no que mais investe como proporção da sua receita. E o terceiro ponto é que aqui no estado não se trabalha só em cima de despesa, que é o grande erro do governo federal. Ele só fala em despesa. O governo federal desonera por ano R$ 330 bilhões, inclusive com produtos na cesta básica de rico. Vocês sabiam que o queijo suíço paga zero de PIS/Cofins? Salmão zero, filé-mignon zero de PIS/Cofins. Se o governo fizesse a mesma teoria com o resultado que temos aqui, teria R$ 33 bilhões/ano. Como o ministro Paulo Guedes adora multiplicar por dez, então 33 vezes 10 seriam R$ 330 bilhões em receita. E ninguém diz nada. Denuncio isso sistematicamente. Desde outubro para cá o governo vem dizendo que vai mudar, e até hoje não tivemos nada na estrutura para melhorar a arrecadação do governo federal. Ainda vai sobrar essa história de reforma tributária, que é importante a ­gente fazer.

Que outros exemplos você poderia citar?

Tem vários exemplos que o Ceará fez e que rendem dinheiro. Quer ver outro simples? Mas aí o governo federal não gosta muito. O governo fez de 2000 a 2017 31 programas de Refis, aquele que você dispensa juros e multas. Com isso o Brasil abriu mão de R$ 800 bilhões. Sabe o que fizemos aqui? O governador Camilo Santana (PT) enviou uma proposta para o Legislativo proibindo Refis por dez anos. Aprovou-se cinco anos. Sem nada acontecer, a receita aumentou 1,9% em relação ao exercício anterior pelo simples fato de eliminar a possibilidade pelos cinco anos – já entramos no terceiro, ou seja, teriam que pagar de qualquer maneira. Só a perspectiva de não ter despesa de juros e multas fez com que as empresas e pessoas físicas buscassem parcelar seus débitos, buscar uma solução conforme a legislação permite, dando um impacto de 2%. É dinheiro.

Outro ponto é a avaliação do investimento – isso é um orgulho nosso. O Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) e a Secretaria de Planejamento estão com uma estrutura para definição do programa de investimento previamente. Ou seja: você faz uma análise do que é e qual impacto econômico vai gerar. Acho que nessa metodologia o governo também poderia se espelhar.

Sempre se volta com a conversa de que o governo pretende cortar o Refis, mas nada acontece. Falta vontade política ou as corporações dominam o Estado?

Sim, e o governo federal não tem coragem de fazer. O que ele está propondo, e já falamos com o ministro Guedes sobre isso, no Plano Mais Brasil é que os incentivos fiscais só serão cortados a partir de 2026. Isso porque o governo quer resolver o problema dos quatro grandes – SP, MG, RS e RJ – e os pequenos que se lasquem depois. Se quer resolver, então proíba agora. Mas o governo não tem coragem de fazê-lo até pela influência dos estados mais proeminentes da vida pública e política brasileira. Ou seja, o Brasil não estaria mais precisando de dinheiro. Então são erros primários que eu acho que eles estão cometendo e precisam ser avaliados.

Mas vocês fizeram outras reformas, além do corte do Refis...

Iniciamos a reforma da Previdência já em 2014, em três etapas: segregação de massa; elevação da alíquota previdenciária de 11% para 14% em 2016 e capitalização para quem recebe acima do teto do INSS em 2018. Em 2019 colocamos em prática outra reforma, seguindo o que foi aprovado em nível federal, com algumas diferenças.

Também fizemos a Emenda Constitucional do Desenvolvimento Sustentável (tipo teto dos gastos). A diferença com o governo federal é que ele controla a despesa primária. Aqui no Ceará eu controlo despesa primária corrente, que possibilita liberar os investimentos. É o que o governo deveria fazer, como já havia dito. Criamos um Comitê Gestor para controle do gasto corrente, só para citar algumas ações que fizemos aqui no Ceará.

Você é um defensor do sistema de capitalização. A reforma da Previdência aprovada não contempla isso, embora o ministro Paulo Guedes defendesse o sistema de capitalização. Qual sua avaliação sobre o texto que foi aprovado?

Minha proposta diferia da do ministro Paulo Guedes, com quem estive pessoalmente. O que o Guedes queria era um regime puro, sem contribuição patronal. Mostrei a ele que deveria se manter um pilar de repartição ao redor de R$ 4 mil e o que excedesse esse valor na contribuição patronal seria igual à do trabalhador. Naquela época a do trabalhador era de 8,5% a 11%, no INSS, por exemplo. A contribuição patronal cairia de 20% para 8,5%, ou para 9% ou para 11%. Com isso você teria uma redução de carga tributária, no mínimo, de 50% da contribuição patronal. Ou seja: teria sido um avanço enorme para o Brasil. Embora a equipe técnica concordasse comigo, não tive forças para convencer o ministro.

Mas fiquei sabendo que você não desistiu...

Não. Devo apresentar no Congresso, brevemente, alguns números que estão sendo compilados pelo Ataliba (Flavio, secretário de Planejamento do Ceará). Insisto nisso porque a Previdência não tem só um efeito fiscal. Tem também um efeito macroeconômico de grande importância que não se leva, muitas vezes, em conta. E vou continuar insistindo na questão de retirar os investimentos do teto dos gastos.

Mas você vai ter que convencer a equipe econômica que defende a atual estrutura do teto dos gastos. E não será uma tarefa fácil.

Eu sei. Mas contra números não há argumentos. Na situação em que estamos, com a economia andando de lado, temos que ter investimento para voltar a crescer.

Você defende que os estados com contas mais equilibradas deveriam ter um tratamento diferenciado, e critica o Plano Mansueto, por estender facilidades a estados com menos equilíbrio fiscal. Qual seria a alternativa, se temos estados praticamente falidos?

Se você olhar o endividamento dos estados brasileiros, dos R$ 900 bilhões que devem à União, RS, MG, RJ e SP representam 84%. Se eu colocar a prefeitura de SP, vai para 86,8%. Os restos dos estados todinhos dessa diferença vai de 86 para 14%. Esses estados estão sugando esse processo de endividamento, não fazem o dever de casa, ao não fazê-lo, acabam pedindo mais uma vez socorro ao governo federal. No Rio, há dois anos e meio foi aprovado o regime de Recuperação Fiscal. Foi inventado um regime que em tese iria impor regras aos estados para que pudesse fazer ajuste e a União fazer rolagem dessa dívida. Vocês sabem o quanto os brasileiros já pagaram pelo Rio de Janeiro nesses três anos? R$ 34 bilhões. Aí o estado do Ceará, que está organizado, quer tomar um crédito de R$ 800 bilhões, é uma novela: não pode, União não quer dar garantia.

E há algo mais grave: agora estão querendo, está pronto projeto de lei complementar, em que o governo já enviou o Plano Mansueto, que além de disciplinar novas regras dos estados, vai alterar as exigências para que outros estados além do RJ possam entrar para obter benesses do governo federal. Como assim? Fazendo um alongamento de dívida e a União além de não receber dinheiro que o estado deve ao governo, o governo federal paga pelo estado as dívidas que ele tem no BNDES, no Banco Mundial (BID). E outros estados que estão na mira. E além desses três novos estados, eles querem alongar de novo o prazo de pagamento do RJ, de três para seis anos que já consumiu R$ 32 bi ou R$ 34 bi, daria mais R$ 37 bi. Alguém tem que falar isso. Então os estados que fizeram seu dever de casa merecem uma condição diferenciada inclusive para expandir sua atividade econômica. Aliás esses estados têm baixo grau de endividamento, têm mais capacidade de se endividarem e produzirem mais atividade econômica e mais emprego nas suas economias.

Que avaliação você faz desse pouco mais de um ano do governo Bolsonaro?

Em termos políticos é um governo sem articulação de base. Tem tido dificuldades em prevalecer seus projetos, apesar da extraordinária boa vontade da Câmara dos Deputados em reformar o país. É só ver as reformas importantes que foram aprovadas.

No plano econômico, apesar do governo ter feito esforços para equacionar o déficit primário e a elevação intertemporal dívida/PIB para os próximos dez anos, o que não aconteceu ainda, ele continua sem tomar medidas que poderiam ajudar no crescimento, como ações na área de infraestrutura do país. O governo não consegue se desprender das amarras com o sistema financeiro. E não tem nenhuma política na área social. Politicamente é ruim. Economicamente também. E precisa se preocupar mais fortemente com a produtividade.

Que vem despencando, como mostra o Observatório da Produtividade do IBRE. No ano passado deve ter caí­do 1%, o que é muito grave, não?

O governo tem sido ausente dessa questão. Sem aumentar a produtividade não se consegue crescimento sustentável e de boa qualidade. Tem, urgentemente, que resolver a questão da educação no país, que o Ceará é exemplo e deveria ser seguido. Que é baseado na gestão por resultados.

O governo não tem nenhum projeto para o país. Você concorda com isso?

Não tem projeto de médio e de longo prazo. Ele não consegue fazer isso.

Não consegue por quê? Falta de base parlamentar?

Apesar dos excelentes quadros que o governo tem, como o Mansueto (Almeida, secretário do Tesouro) e o Valdery (Rodrigues, na Secretaria Especial da Fazenda), parece que o ministro não tem tido a sensibilidade de perceber que ou se tem um projeto de longo prazo, ou o Brasil vai ficar eternamente patinando em resolver questões de curto prazo.

Com a propagação do coronavírus, começaram várias manifestações contra o presidente. Como você avalia isso?

O governo vem perdendo popularidade já há algum tempo. Nesse momento, ela cresceu em função da não seriedade que o presidente Bolsonaro tentou demonstrar com a pandemia do coronavírus e os impactos que gerará no país. Quando ele estava dizendo que era histeria, e o próprio presidente da Anvisa (Antonio Barra Torres) acompanhou o presidente na frente do Alvorada no último dia 15 de março, mesmo com boa parte da equipe que esteve com o presidente na viagem aos Estados Unidos ter testado positivo para o vírus (até o dia 22 de março eram 23 pessoas) grande parte da classe média, que ajudou a eleger Bolsonaro, percebeu que há algo de muito errado na condução do governo federal. Ou o presidente entende a gravidade da situação, ou ele vai levar o país a uma recessão que ele nem imagina.

Você acha que os ataques às instituições feitas por membros do governo, apoiadores e até pelo presidente, minam as instituições colocando em risco a democracia?

Eu acredito que o Congresso tem se desgastado ao longo dos anos pois nunca conseguiu implantar as reformas necessárias ao país, apesar de pontualmente ele responder em algumas delas, mas a imagem de seriedade de muitos parlamentares chega muito pouco à sociedade brasileira. Nesse Congresso, no entanto, pelo que tenho visto, há uma nova dinâmica dentro da Câmara dos Deputados, sob a liderança do Rodrigo Maia, de recompor o Brasil, de fazer uma agenda de reformas mais igualitária. O Congresso está pronto para isso. Agora, essa tentativa de minar as instituições, eu acho que é muito mais uma defesa quando ele (Bolsonaro) percebeu a redução de seu próprio respaldo popular. Foi uma defesa que ele usou em função de sua diminuição constante de popularidade. Como as pessoas estão muito idiossincráticas em relação ao Congresso e ao Supremo, eu acho que está dando nisso.

Eu acho que enfraquecer as instituições enfraquece a democracia e instaura um clima de ditadura de um único poder e essas liberdades que foram conquistadas a duras penas não se pode pôr em xeque nesse momento.

 


Entrevista publicada na edição de abril da revista Conjuntura Econômica

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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