“Governo não abre novos caminhos para a sociedade se recuperar”

Marcos Cintra – Professor da FGV Eaesp, ex-secretário da Receita Federal

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Conjuntura Econômica — Como avalia a capacidade de o Brasil sair da crise econômica provocada pela Covid-19?

O Brasil teve uma resposta adequada à pandemia, dentro da sua capacidade. Lógico que no começo houve certa resistência, a ideia de que não precisaria um esforço tão grande, mas acabamos alocando 10% do PIB como atendimento emergencial. É bastante para um país como o Brasil. Na Alemanha foi muito mais, quase 25% do PIB. Nos Estados Unidos, também. Considerando nosso status, acho que a resposta do Brasil foi muito eficiente, e acabou sustentando um nível de atividade que está se mostrando menos maléfico do que em muitos países. Então esse é o dado positivo: o governo reagiu corretamente, impelido pela necessidade do momento.

Mas o desequilíbrio estrutural fiscal brasileiro já antecedia a pandemia e foi agravado por ela. A situação da economia brasileira me parece típica de um país que tenta implantar desde 1988 um Estado de bem-estar social que acabou gerando gastos e um problema fiscal muito além daquele que a economia consegue suportar. Para mim, o teto de gastos foi uma medida heroica porque, para um problema fiscal crônico, estrutural como esse, só existem as soluções tradicionais. A primeira delas é aumentar a carga tributária, e isso já foi feito até o limite. Acho que não há mais espaço para aumento de carga no Brasil, pois isso cria um crowding out muito sério na economia, em termos de investimento, em termos de credibilidade de políticas, assim por diante. O segundo seria evidentemente um aumento de endividamento, que durante um período de crescimento medíocre não deve acontecer, porque agrava o problema fiscal ao invés de resolvê-lo. A terceira alternativa é a que países em geral fazem quando não encontram outros instrumentos, que é deixar a inflação correr. Mas essa é a medida mais injusta e socialmente criticável. Nós, que já vivemos duas ou três crises inflacionárias, não podemos mais correr esse risco. Então, a única forma de tentarmos solucionar esse problema veio com o teto de gastos. Não que ele resolva o problema em si, mas obriga o país a buscar espaço orçamentário internamente, reduzir custos para manter as atividades essenciais em funcionamento. O teto só resolve o problema fiscal havendo crescimento econômico. Aí sim, começa-se a abrir espaço orçamentário para investimentos, e pode-se resolver o problema fiscal. 

Como avalia a ação do governo para manter o teto como âncora fiscal?

O governo, infelizmente, não tem essa concepção que descrevi. Porque ela exige abrir espaço dentro do atual orçamento, engessado e completamente limitado do ponto de vista dos gastos discricionários. Vejo o Brasil com uma enorme dificuldade econômica, sem uma liderança política capaz de levar a sociedade a compreender a dificuldade do momento, e exigir sacrifícios. Um estadista veria que isso é momentâneo e reverteria medidas corretas em seu benefício. Infelizmente, nosso governo não abre novos caminhos para a sociedade se recuperar. É um governo que simplesmente se pauta pela opinião pública, pelas manchetes de jornais, por um certo populismo, por uma discussão sobre reeleição absolutamente prematura e indevida que não fazia parte da proposta deste governo eleito, do qual fiz parte na elaboração do projeto econômico. E que, portanto, acaba tornando o próprio teto de gastos uma medida ineficaz, não havendo vontade política de abrir espaço orçamentário para respeitá-lo.

Qual será a saída, então?

Tenho meditado sobre isso, e volto à minha tese da questão tributária, com uma outra proposta. Se não dá para aumentar endividamento, e não queremos inflação, poderíamos criar um imposto mínimo, que incidiria apenas sobre quem hoje não está pagando, pela tributação sobre movimentação financeira, uma CPMF compensável. Depois podemos discutir por que considero essa tributação menos distorcida que um IVA mal aplicado. O fato é que esse é o único tributo insonegável e que alcança a todos. É o único tributo que durante 12 anos foi implantado no Brasil (IPMF, entre 1993-94; e CPMF, 1996-2007) e duvido você apontar alguma forma de sonegação sistemática desse imposto. Um tributo que chegou a arrecadar 5%, 6% da carga tributária brasileira e não deixou nenhum contencioso tributário. 

A minha proposta, então, é implantar esse imposto mínimo com uma alíquota alta, digamos, de 2%, 3% ou até 5%, tornando a arrecadação compensável com qualquer outro tributo federal, estadual ou municipal. Com isso, você aumenta a arrecadação por chegar a uma fatia significativa do universo de contribuintes que não são atingidos plenamente pelos tributos convencionais declaratórios. Quem são? O sonegador, que às vezes é formal mas cria mecanismos de sonegação ilegais; o informal; o evasor, aquele sonegador legal entre aspas que busca brechas no sistema tributário; e o ilegal, que no Brasil é um caso sério, que vai do roubo de carga ao tráfico de drogas. Veja, estimativas do sindicato dos auditores fiscais mostram que, de uma carga tributária federal de aproximadamente R$ 1,6 trilhão, há evasão, sonegação, de R$ 400 bilhões. Então, se eu não sou sonegador, uso esse crédito gerado pelo imposto mínimo para pagar meus impostos. Mas o que está na informalidade, na ilegalidade, pratica evasão em alta escala, esse vai ter créditos remanescentes que, terminado o exercício, serão revertidos para o Tesouro Nacional. O assalariado não vai sofrer nada com isso. Hoje a tecnologia permite até gerar uma progressividade nesse imposto mínimo. Por exemplo, gerando isenção para movimentações mensais de até R$ 2 mil. Isso significa usar a tecnologia para criar novos sistemas tributários, compatíveis com nosso mundo digital. A crítica da cumulatividade de tributo sobre movimentação financeira não procede, tampouco de que vai levar à verticalização, à monetização da economia, à dolarização. Nada disso aconteceu em mais de uma década de CPMF. 

Recentemente, o senhor firmou um documento, “Caminhos para a reforma tributária”, que defende que a conjuntura extraordinária provocada pela pandemia não é adequada para a aprovação de uma reforma tão complexa como a tributária. O senhor faria alguma exceção?

Acho que a desoneração da folha fica em pé por si só, e seria uma coisa boa especialmente nesse momento pós-pandemia. Desonerar a folha com tributo sobre movimentação financeira não depende de você criar um IVA. Já a recíproca não é verdadeira. Um IVA não se sustentaria sem uma compensação como a desoneração. 

Esse é um tema interessante, porque todo mundo concorda com desonerar folha, mas todo mundo critica a movimentação financeira para fazer a desoneração. Fiquei durante nove meses na Receita analisando alternativas de financiamento, pedindo propostas para serem analisadas. Analisamos todas as propostas, e a única coisa plausível, fácil, automática, que distribuiu o ônus pegando 50% da economia que está fora do sistema tributário, é uma tributação sobre contribuição financeira. Acho que será difícil encontrar outra alternativa para desonerar a folha. 

Clique aqui e assine a Conjuntura Econômica para ler a íntegra desta entrevista na edição de outubro.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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