Gestão da crise elétrica precisa estar alinhada a estratégias para o uso de energias cada vez mais renováveis, apontam especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Entre as diretrizes escolhidas pelas grandes economias em seus pacotes de apoio à retomada econômica pós-pandemia, o apoio a tecnologias e modos de produção que promovam o desenvolvimento de forma ambientalmente sustentável,visando mitigar o avanço do câmbio climático, é uma das mais desafiadoras. No campo da geração e uso de energia elétrica, o avanço tecnológico tem permitido projetar mudanças que não só refletem uma transformação do setor, como deve influenciar a vida de consumidores de modo geral, sejam eles pessoas ou indústrias. 

Estudo publicado em junho pela Agência Internacional de Energia Renovável (Irena, na sigla em inglês) apresenta os horizontes dessa transformação, com base em um cenário no qual os países se comprometem com um projeto de transição energética para limitar o aumento da temperatura da Terra a 1,5 graus Celsius até 2050. Tal meta é considerada pela Irena factível e adequada para proteger o planeta de uma piora no quadro de superaquecimento. Para alcançá-la, os países deverão investir pesado em transição energética garantindo, nesse prazo, que 90% da geração elétrica global seja de fontes renováveis. Nos cálculos da Agência, essa mudança demandará um investimento mundial anual de US$ 4,4 trilhões, para o qual contribuem capital público, privado e de instituições financeiras de desenvolvimento. O resultado dessa transformação, afirma a Irena, transbordaria o aspecto ambiental. O incentivo a essa indústria também teria potencial de ampliar o PIB dos países em 2,4%, em média, durante o período de transição, até 2050. Após esse período, o ganho seria de 1,2%. O estudo aponta, entretanto, que no caso de países produtores de petróleo que hoje usufruem da receita de royalties esse impacto seria negativo, “o que ressalta a necessidade de um marco político abrangente para endereçar as mudanças causadas pela redução da dependência dos combustíveis fósseis”, descreve. A demanda gerada em toda a cadeia, da pesquisa à fabricação de equipamentos, abastecimento e manutenção, fomentaria um aumento em 0,9 pp, em média, no potencial de geração de empregos em comparação com o cenário atual, aponta o estudo, somando 122 milhões de vagas em 2050, com destaque para a demanda do setor fotovoltaico. “É uma mudança que envolve não só como se produz, mas como se consome energia”, diz Ricardo Gorini, head do programa Remap, da Irena, citando exemplos que vão da eletrificação do transporte à geração solar nas residências. “É uma nova forma de organizar a sociedade”, ilustra Joísa Dutra, diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (FGV Ceri), em webinar promovido pelo Ceri sobre transição energética. 

Investimentos anuais em energia renovável 2015-19


Fonte: Frankfurt School - UNEP Centr e BNEF 2020; dados BNEF excluem investimentos em grandes hidrelétricas (potência de geração maior que 50 MW), estimadas em US$ 28 bilhões na média anual em 2015-19.

O nível de investimento sugerido pela Irena supera em mais de dez vezes o registrado em 2019 - que, por sua vez, já é três vezes maior do que o de 15 anos atrás, com destaque para o avanço da China.Joísa lembra que, no caso brasileiro, desde a crise do setor elétrico de 2001 os investimentos em geração se diversificaram, reduzindo a participação das hidrelétricas na capacidade instalada de 83% para 62%. “Isso aconteceu preservando a vocação de geração renovável brasileira, que representa 84% do total, contra uma média mundial de 28%”, compara Joísa. Ela destaca, entretanto, que a ampliação do papel das renováveis com garantia de suprimento demandará aprimoramentos que vão da governança à coordenação dos atores desse setor. Visando, entre outros, ao cumprimentos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, para o setor, que incluem assegurar energia limpa, confiável e a preço acessível para todos, e ampliar o uso de energia renovável em detrimento dos combustíveis fósseis, promovendo a eficiência energética e redes de energia mais sustentáveis.

Elbia Gannoum, presidente-executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), ressaltou no encontro online o papel já verificável do investimento na geração eólica e solar para o desenvolvimento econômico  de regiões do Nordeste. “É um caminho que vem sendo facilitado pelo avanço e o barateamento de tecnologias, diz. Para ela, com domínio do hardware, o que falta agora ao Brasil é melhorar a governança para essa transição. Elbia aponta que tal desafio engloba desde a revisão dos incentivos públicos para o desenvolvimento de cada geração na matriz ao papel do consumidor, por exemplo, na tarefa de ampliar a eficiência energética. “Há um papel importante a se desenvolver junto à sociedade nesse sentido, no uso adequado dos recursos renováveis, para os quais também já temos tecnologia disponível”, afirma, citando o caso de medidores que permitem gerenciamento de demanda.

Investimento por tecnologia para uma mudança de cenário


Fonte: Irena.

“A conclusão é que estamos todos no mesmo barco e precisamos contribuir para esse processo de transição, assumindo novas formas de nos posicionar, seja como investidores, governo ou consumidores”, diz Gorini, ressaltando a convergência dessa tarefa com as dimenões do conceito ESG 

(ambiental, social e de governança corporativa, na sigla em inglês). “Trata-se da reorganizaçã da sociedade em todos os seus objetivos, conectados, e não focar no sucesso em apenas uma

dimensão”, reforça. Frente aos desafios econmômicps trazidos pela pandemia de Covid-19 - que, no caso brasileiro, se soma este ano a uma

crise hídrica - Gorini defende a importância de alinhar estratégias, evitando desvios à meta de descarbonização. “Precisamos desde agora escolher os sapatos mais adequados para trilhar esse caminho”, afirma, citando, por exemplo, a necessidade de se privilegiar a descentralização inerente ao desenvolvimento desse novo mercado. “No caso do Brasil, a concepção do ambiente regulado por si não necessariamente traz redução da participação das renováveis, mas precisamos repensar alguns dos instrumentos usados, buscando um olhar mais estratégico para essa transição”, diz.

Para Elbia, outro ponto-chave para o sucesso dessa estratégia é que cada país respeite suas especificidades econômicas e sociais. “Países que ainda estão no meio de sua trajetória de crescimento podem simplesmente abrir mão de sua arrecadação para investir na economia verde? A discussão sobre uma transição justa precisa passar por esses questionamentos também”, ressalta.

Joísa afirma que a intenção do Ceri é promover uma série de diálogos sobre transição energética, visando abordar cada aspecto dessa ampla agenda com mais detalhes e colaborar para o avanço das discussões dos desafios de implementação no caso brasileiro.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV

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