Estudo do Unicef elaborado pelo pesquisador do FGV IBRE Daniel Duque aponta desafios brasileiros para combater a pobreza infantil

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Quando se estuda a pobreza em nível mundial, observa-se que a camada mais vulnerável se concentra entre crianças e adolescentes. De acordo ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), esse grupo soma um terço da população do globo, mas é a metade entre os que buscam sobreviver com menos de US$ 1,90 por dia (marco da pobreza extrema definido pelo Banco Mundial para países de renda similar à brasileira). Crianças e adolescentes também foram os que mais sofreram os impactos econômicos da pandemia. Segundo estimativas do Unicef, 100 milhões de crianças passaram à pobreza monetária (menos de US$ 5,5 por dia, ainda de acordo ao Banco Mundial) devido à Covid-19.

No Brasil, onde antes da pandemia a pobreza monetária atingia o dobro de crianças e adolescentes em relação à população adulta (de 35% a 45%, dependendo da faixa etária, contra 20% entre adultos) – o mesmo acontecendo com a pobreza extrema (12% contra 6%) –, o auxílio emergencial de R$ 600 distribuído em 2020 conseguiu melhorar a vida de parte desse grupo, mas apenas de forma temporária. “Esse auxílio não se propôs a resolver o problema da pobreza monetária infantil em médio e longo prazos. Para isso, o foco do Auxílio Brasil agora deveria ser uma proteção social perene, com fontes de financiamento bem definidas, sustentáveis e viáveis”, afirma Florence Bauer, representante do Unicef do Brasil, no estudo Pobreza Infantil Monetária no Brasil – impactos da pandemia na renda de famílias com crianças e adolescentes.

O documento, lançado na semana passada, é de autoria do pesquisador do FGV IBRE Daniel Duque. Nele, Duque mostra que durante o terceiro trimestre de 2020, quando havia a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, a pobreza monetária infantil caiu 5 pontos percentuais (p.p.), mas já nos três meses seguintes, com a redução do valor do benefício já havia recuperado 4 p.p. No mesmo período, a pobreza extrema saiu de 12% para 6%, voltando para 10% no quarto trimestre de 2020. “Sem o auxílio, tanto a pobreza monetária quanto a pobreza monetária extrema teriam aumentado em torno de 10 pontos percentuais no segundo e terceiro trimestres de 2020, o que corresponde a 4,4 milhões de crianças”, diz Duque. O pesquisador também mostrou no estudo que, entre crianças não brancas, a pobreza monetária extrema das crianças caiu de 17% no primeiro trimestre de 2020 para 6% no terceiro trimestre desse ano, saltando a 20% no primeiro trimestre de 2021, com a suspensão do auxílio, estabilizando-se posteriormente em 15%, com a reintrodução do auxílio emergencial nos períodos seguintes. Há diferenças marcantes também quando essa evolução é observada por região do país, sendo mais significativa no Norte/Nordeste, onde no terceiro trimestre de 2020 a pobreza monetária extrema chegou a cair 14 pontos percentuais, superando as desigualdades raciais.

Parcela de diferentes grupos da população abaixo da linha da pobreza extrema, de US$ 1,90/dia


Fonte: Elaboração própria com dados do IBGE e Banco Mundial.

 

Parcela de diferentes grupos da população abaixo da linha da pobreza de US$ 5,50/dia


Fonte: Elaboração própria com dados do IBGE e Banco Mundial.

Duque ressalta que a definição de um valor mais alto do Auxílio Brasil em 2022 poderia ser mais eficiente se o aumento temporário do benefício, para R$ 400, fosse calibrado conforme o perfil das famílias, e não distribuído uniformemente entre todos os beneficiários, independentemente se possuem filhos ou não. “Isso faz ainda mais diferença quando observamos que a recuperação do mercado de trabalho depois do choque da pandemia ainda está mais fraca entre os trabalhadores que fazem parte de famílias com filhos, sendo melhor para homens e famílias sem filhos”, afirma. Ele ainda ressalta que uma demora prolongada para recolocação no mercado pode ter efeitos negativos permanentes - tema já analisado no Blog pelo pesquisador associado do FGV IBRE Bruno Ottoni. Duque demonstra preocupação sobre as definições quando ao valor do benefício depois de 2022, quando termina o prazo para o adicional que elevou a transferência a R$ 400. “Embora seja positiva e necessária a ampliação dos valores médios previstos para o primeiro ano do Auxílio Brasil, será preciso manter patamares parecidos nos anos seguintes, já que não há evidências que apontem para níveis maiores de recuperação econômica da população mais pobre”, diz.

Massa de rendimentos do trabalho efetivamente recebidos por trimestre e presença de filhos no domicílio


Fonte: Elaboração própria com dados da PNAD Contínua (IBGE).

No estudo, o pesquisador do FGV IBRE faz recomendações visando a garantia de que o Auxílio Brasil ofereça a proteção adequada no longo prazo. Entre elas, indica a necessidade de se garantir fontes sustentáveis e contínuas de financiamento, definidas em sua legislação, já que o programa hoje segue a mesma dinâmica do Bolsa Família, de ser um gasto obrigatório, mas com controle de fluxo. Isso possibilitaria a eliminação de filas entre a população elegível ao benefício. “Também é importante a garantia do reajuste adequado do valor do benefício – o Bolsa Família estava congelado desde 2017 – e de atualização da linha de elegibilidade”, completa. Duque também cita a garantia de mecanismos de expansão da cobertura em situações de emergência ou calamidade pública, o que mitigaria a necessidade de políticas públicas paralelas como foi o auxílio emergencial. E, por fim, defende a expansão do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), de modo a fortalecer o monitoramento socioassistencial, a busca ativa e o cadastramento da população não beneficiária do Auxílio Brasil, mas sujeita a cair na pobreza em caso de choques. “Estima-se que cerca de 20% dos domicílios ficaram descobertos por qualquer tipo de transferência de renda após o fim do Auxílio Emergencial, em outubro de 2021. Adiciona-se a isso o fato de que domicílios com crianças mantêm-se mais vulneráveis do que aqueles sem crianças, especialmente devido à retração do emprego”, afirma no estudo.

Fator intergeracional

Parte dessas recomendações converge com o receituário apresentado por especialistas para combater outro problema sofrido por essas crianças e adolescentes, que é o de superar a chamada pobreza intergeracional – ou seja, aquela que impede que, quando adultas, essas crianças consigam superar a condição de pobreza que viveram com seus pais. Em webinar promovido pelo FGV IBRE com a Folha de S. Paulo no final do ano passado, Vinícius Botelho, ex-secretário nos ministérios do Desenvolvimento Social e da Cidadania,  destacava que, apesar de o Bolsa Família (agora Auxílio Emergencial) ser uma transferência condicionada, envolvendo contrapartidas como presença escolar – o que colaborou para aumentar a escolaridade média entre crianças de famílias beneficiárias do programa –, estudos ainda trazem resultados ambíguos quanto ao efeito concreto dessas medidas para a reversão da pobreza intergeracional.

Em webinar promovido pela FGV EPPG em meados de março, João Mario França, diretor geral do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), ressaltou que, frente a conclusões desencontradas sobre esses efeitos, é preciso pensar de forma mais ampla no combate à pobreza intergeracional – incluindo um olhar para a evolução do mercado de trabalho e adequação do capital humano para a oferta –, mas também fortalecer as bases que hoje são mais débeis dentro do programa de transferência condicionada brasileiro. “O tripé para atacar a pobreza consiste em educação, saúde e assistência social. Mas este último ainda é o primo pobre do grupo, mesmo sendo um elemento importante, que trata do acompanhamento direto com as famílias”, diz, reforçando a mensagem passada por Duque de expansão do trabalho do SUAS.  “Também é preciso garantir que as transferências cheguem num valor adequado – por isso a importância de ser um programa bem focado, para ter sustentabilidade fiscal –, e ainda não sabemos quanto será o benefício a partir de 2023, nem qual a cobertura”, diz França, indicando que no Ceará o governo opera o Cartão Mais Infância Ceará, que provê um benefício complementar de R$ 100 a famílias em extrema pobreza com crianças de zero até completar 6 anos. “Outro elemento importante é aprimorar as condicionalidades relacionadas à educação, para que extrapolem o monitoramento da matrícula e frequência escolar e passem a olhar com mais cuidado o desempenho do aluno”, afirma.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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