“Estamos chegando em um equilíbrio primário pré-dívida com a União”

Marco Aurélio Cardoso, secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Mesmo sob condições adversas da pandemia, o Rio Grande do Sul conseguiu fechar 2020 com reduções significativas de despesa com pessoal e do déficit financeiro, duas conquistas relevantes para o estado. Como conseguiram?

São frutos de uma quantidade grande de medidas, tanto em receitas quanto em despesas, de um programa de ajuste muito extenso. Da forma como foi feita, nossa reforma previdenciária (aprovada em janeiro de 2020) tem um impacto atuarial no longo prazo, mas também uma potência de curto prazo pela questão da contribuição dos servidores. Saímos de uma alíquota flat de 14% para a tabela progressiva da União (de 7,5% a 22%). Além dessa base ser mais justa, por ser progressiva, ainda reduzimos a base de cálculo dos inativos, que era do teto do INSS, para R$ 1 mil. Fomos no limite do que os estados hoje podem fazer dentro do que a Constituição permite. Essa redução de base de cálculo teve um efeito de aumento de contribuição dos servidores muito grande, de R$ 2,1 bilhões no déficit financeiro do ano -  ou seja, na diferença entre contribuições e despesas. Mas nem todo esse impacto é fiscal, pois quando se aumentou a alíquota do servidor, também houve aumento da patronal, uma relação mais ou menos de 2 para 1.  Então, desses R$ 2,1 bi, um terço foi realmente economia para o Tesouro. Isso é meio mês de folha de pagamento, o que é bastante para o estado, que tinha um de atraso de folha. 

Até o momento, a reforma inclui apenas os civis, mas a gente tem um projeto de lei também para os militares. No ano passado esse projeto acabou não sendo votado, porque existe um conflito com a lei federal, que determinou que militares estaduais tenham as alíquotas das Forças Armadas. Essa questão foi para o STF, e ele já decidiu que esse aspecto é  inconstitucional. Com base nisso, retornamos com o projeto, que estará em  em votação neste ano legislativo. 

Além disso, tivemos medidas como não dar aumento de salários nesses dois anos, os chamamentos têm sido em número menor do que as saídas, o que reduz a força ativa. A reforma administrativa, por sua vez, acabou com benefícios como incorporação de função e acúmulo de triênios. Isso fez com que a folha de servidores, que normalmente crescia acima da inflação, tenha crescido abaixo em 2020, apenas 1% nominal. Então, quando juntamos essa despesas caindo em termos reais com o aumento de contribuição isso gerou, conseguimos ter uma despesa nominal de pessoal menor que a de 2019, em R$ 673 milhões.

Também tivemos ações focadas em outras despesas. Se tirarmos os gastos extraordinários com saúde, o resto do custeio caiu R$ 120 milhões nominais sobre o ano anterior. Mantivemos a suspensão do pagamento da dívida com a União, e tivemos também acordo de duodécimos com os Poderes, com um congelamento por dois anos em relação aos previstos, de R$ 200 milhões. Enfim, foram várias camadas de despesas. 

Na área de receitas, depois das quedas terríveis em arrecadação de abril a julho, o próprio ICMS no Brasil todo começou a crescer dois dígitos reais. Então, de setembro a dezembro, mesmo com o fim da ajuda da União, acabamos ficando com o ICMS nominal praticamente idêntico ao de 2019. Em relação ao orçamento previsto para 2020, a perda foi de R$1,3 bilhão. O estado tem  muitas fontes de recursos, de diferentes natureza, e conseguimos realizar algumas despesas  entre fontes alternativas, liberando um pouco mais o Tesouro. Então como nossa receita corrente líquida cresceu acima da inflação, somando a ajuda da União, e a despesa de pessoal caiu em termos nominais, a partir de novembro o estado colocou o salário em dia.

Hoje há recursos para garantir o pagamento de quantos meses de folha?

Temos anunciado mensalmente nossa situação de caixa, e em janeiro informamos que até abril os salários estão garantidos em dia. Isso não significa que temos esses recursos em caixa, pois o estado não tem poupança. É com base na previsão de arrecadação que consideramos segura, e também pelo fato de o IPVA ser sazonal, concentrado até abril. O resto do ano vai depender do que vai acontecer na economia, qual será a velocidade da vacinação, se haverá auxílio emergencial ou não, questões que certamente vão impactar a arrecadação de ICMS.

É uma situação ainda frágil, com certeza. Mas pagamos os salários correntes, o que já é uma grande vitória. Conseguimos regularizar o pagamento de fornecedores, estabilizamos o fluxo, mas o estado ainda paga o décimo-terceiro no ano seguinte. O estado ainda não investe nada, e não pagamos a dívida com a União, por liminar. A despesa da dívida com a União ainda não cabe no nosso fluxo; se fizermos isso, atrasaremos dois a três meses de salário por ano. Estamos chegando em um equilíbrio primário pré-dívida. Por isso a importância do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). O estado tem que se preparar para colocar essa dívida no seu caixa. 

Em webinar promovido pelo FGV IBRE no ano passado com secretários estaduais de Fazenda, do qual participou, destacou-se a preocupação com os investimentos necessário para a retomada das aulas em um modelo híbrido. Essa ainda é uma preocupação para o estado?

Dos gastos extraordinários, o maior deles sem dúvida foi na área da saúde, com um crescimento nominal de R$ 1,1 bilhão em 2020. Mas este foi em grande parte financiado com recursos do SUS, emendas parlamentares e com a Lei 173/2020 (do Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, que destinou R$ 60 bilhões a estados e municípios). Para este ano, a gente imagina que esse valor vá se reduzir. Com relação à educação, o retorno das aulas presenciais na rede estadual praticamente não aconteceu em 2020. O volume de recursos que gastamos que foi comprar equipamentos de proteção para as escolas e equipamentos para os alunos acabaram não sendo tão expressivos quanto a gente imaginava. Esse investimento de certa forma está guardado, disponível para este ano letivo. 

Qual o seu balanço da reforma tributária aprovada no Estado?

Aprovamos a reforma em dezembro, mas uma lei muito alterada em relação à proposta inicial, sem alteração de patrimônio nem realinhamento das alíquotas. A lei que a Assembleia Legislativa aprovou não tratou do IPVA nem do ITCD (imposto sobre herança e doações), esses capítulos foram retirados. Com relação ao ICMS, as mudanças qualitativas passaram - o código de boas práticas, no regime de conformidade, alteração nas multas, na nota fiscal gaúcha, e da devolução de ICMS aos cidadãos com base no crescimento do varejo. Mas o redesenho, cuja ideia era de redistribuir a carga por dentro do imposto, retirando incentivos como o da cesta básica e mudando as faixas de 0% a 30% para de 12% a 25%, não aconteceu. O que acabou sendo aprovado foi a extensão por um ano de parte das alíquotas extraordinárias - de combustível, telefone e energia -, e uma redução da alíquota geral, de 18% para 17,5% este ano e 17% no ano que vem. 

Do ponto de vista de 2021, não há diferença substancial de receita em relação ao que já tínhamos estimado. Para os outros anos, sim, porque a alíquota extraordinária só vai vigorar este ano, e a reforma tinha uma trajetória de mudança na arrecadação que sem o redesenho não aconteceu. 

Considera que o impacto da pandemia nas economias estaduais suscitará uma nova rodada de guerra fiscal para atração de investimentos?

Acho que esse é um tema que tem avançado menos do que deveria. É muito difícil - aliás, a reforma tributária está se provando como a mais difícil de todas. Hoje praticamente não está havendo investimento no país, então essa guerra, a meu ver, está até menos ativa por essa falta de movimento. Além disso, o espaço para se travar uma guerra fiscal está mais controlado desde a Lei Complementar 160, de 2017. Persiste uma quantidade de incentivos e políticas que foram validadas, e poderemos ver a oferta de novas operações em cima desses incentivos já existentes. O que não vejo é a construção de novos benefícios. Fazer um desconto maior do se que fazia acho que não passa no Confaz por unanimidade. 

Mas há outra vertente de incentivos que acho que deveria ser retirada e não é por questões políticas. O maior exemplo desse grupo é o da cesta básica, que claramente é um incentivo que não faz sentido. Hoje há outras tecnologias para se conseguir o objetivo dessa política pública, que é desonerar a baixa renda, definindo-se o corte de renda que se quiser, de outra maneira que não seja ter uma desoneração cuja maior parte vai parte uma faixa de renda que não terá seu consumo afetado sem ela. Além de incluir produtos que pouco serão demandados pelas pessoas de mais baixa renda, por serem realmente caros. E esse princípio se estende para os programas sociais como um todo, que é a questão de se avaliar a qualidade do gasto. Esse é um debate que se faz pouco, e os incentivos fiscais têm tudo a ver com isso, incluindo a cesta básica, que conversa com os programas assistenciais. 

O país perde em não enfrentar esse tema, porque mantém um gasto de baixa potência. Veja, por exemplo, estudos que comparam o efeito do Bolsa Família e o dos incentivos da cesta básica no Gini, e mostram que o primeiro é muito maior que o segundo. Para um país como o nosso, com falta de recursos, teríamos que agir nessa frente. Mas é difícil, pois qualquer coisa em que se mexa aciona uma articulação muito forte dos setores, vemos isso em qualquer exemplo que se cite.  Aqui no Rio Grande do Sul, um exemplo que considero positivo nessa última reforma foi a eliminação do Simples Gaúcho, que contemplava uma desoneração de ICMS ainda maior para as empresas do Simples. Conseguimos aprovar a maior parte desse incentivo ao extinguir impostos que as empresas tinham nas compras. Aqui no estado, a alíquota interna era maior do que em Santa Catarina e no Paraná devido ao chamado imposto de fronteira, e essas empresas do Simples eram particularmente afetadas por esse custo tributário maior. Então desfizemos o imposto de fronteira, reduzimos a alíquota de compras internas, e essas empresas passaram a ter menos ICMS nas compras de um lado, mas passaram a adotar a tabela do Simples nacional de outro. É claro que um benefício via ICMS é ineficiente, é muito melhor se você trabalhar na eficiência da economia. Isso foi difícil politicamente, mas passou.

Qual o principal desafio para a agenda econômica do Rio Grande do Sul este ano?

A entrada no  RRF é uma meta, pois expressa o equacionamento de uma situação precária que a gente vive, que é ter a dívida com a União sob liminar. E porque através dele vamos construir esse horizonte de dez anos para manter a disciplina fiscal. A persistência do ajuste fiscal refletida na adesão ao regime é uma questão importante, o esforço a que estamos nos dedicando agora não pode ser um espasmo, precisará passar por diferentes governos e pelas transições que aconteçam. O Rio Grande do Sul precisa disso, bem como outros estados, que precisam ter resultados para não desistirem, sem achar que já está tudo resolvido. 

Um grande desafio nosso de 2021, ainda que não seja exatamente da área da Fazenda, é o de fazer as privatizações. Em especial, ter sucesso nos leilões das três empresas do Grupo CEEE, de geração, distribuição e transmissão, por tudo o que envolve, como ser um grupo fragilizado patrimonialmente e demandar investimentos que nem a empresa, nem o estado têm condições de fazer.

Como avalia o texto final do Regime de Recuperação Fiscal, aprovado em dezembro? Quais são os passos para a adesão do Rio Grande do Sul? 

O balanço é positivo. Como escalação de seleção, esse é um tema que gera muitas opiniões, cada um defende mais um determinado ponto que outro, mas como desenho geral é melhor do que o anterior. Primeiro porque é mais longo e mais suave, por não prever carência total. Aquele regime de ficar três anos sem pagar nada, e depois pular de um ano para o outro com uma obrigação de pagamento que representa um mês a mais de folha é convite para dar problema. O texto atual prevê uma disciplina bastante rigorosa. É um perdão que está sendo dado, mas que exige um esforço fiscal muito rigoroso, as redações são duras, e a supervisão prevista para a União fazer é bastante grande. É como se fosse um regime de recuperação judicial mesmo, no qual a diretoria da empresa não tem mais toda a liberdade que tinha. Mas, do ponto de vista de finanças públicas, ficou melhor.

Agora o trabalho tem três movimentos. O primeiro é a regulamentação da lei, na qual a Secretaria do Tesouro Nacional está trabalhando. Foi feito um grupo de trabalho que incluiu os estados potencialmente candidatos ao regime, e passamos o mês de janeiro bastante envolvidos nisso. Sem o decreto regulamentador, não há o que se fazer, porque é ele quem dá o modus operandi. A expectativa é de que seja publicado em março. Aqui no estado, mandamos à assembleia legislativa a atualização da lei local em regime de urgência, e o terceiro passo seria refazer o plano de recuperação, pois tínhamos um plano para seis anos, agora em princípio é para nove, e outras medidas mudaram. São prazos ainda a combinar com o Tesouro, porque eles ainda estão finalizando a regulamentação da lei como um todo. Mas sem dúvida nenhuma a expectativa de adesão é mais forte, e é algo para ocorrer ao longo deste ano. 

E o que esperam da agenda no âmbito federal?

O principal, neste momento, é a rapidez na vacinação. Não só do ponto de vista das pessoas como da economia. Segundo, acho que seria fundamental que a agenda das reformas voltasse a andar - a tributária, administrativa e a de controle de gastos, seja com a PEC Emergencial ou qualquer outro nome que se queira dar para ela. Essas medidas são fundamentais para os estados também. 

A proposta entregue pelo governo federal para a reforma tributária unifica apenas tributos federais sobre consumo, criando a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Considera suficiente? 

Acho que não haver a reforma dos impostos indiretos como um todo é insuficiente. E também acho difícil fazer essa reforma de impostos indireta sem olhar o resto da matriz. Seria mais eficiente se conseguíssemos ter um olhar sobre a tributação como um todo, incluindo renda, patrimônio. Mas, pelo menos no caso dos impostos indiretos, tem que ser todos. O maior deles é o ICMS, o mais complicado é o ICMS. Se os problemas de escrituração de classificação das empresas forem solucionados só no PIS/Cofins, continuaremos tendo conflito com ICMS e ISS.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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