Especialistas e a MP de privatização da Eletrobras aprovada na Câmara: “se ficar como está, Brasil perde”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na semana passada (19/5), a Câmara dos Deputados aprovou uma medida provisória que viabiliza a privatização da Eletrobras. Em sua versão inicial, a MP havia recebido amplo apoio do mercado, que via na iniciativa a possibilidade de tornar o sistema mais eficiente e de modernizar a companhia, como apontou ao Blog Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação e Estudos em Infraestrutura (FGV Ceri).

O texto  que recebeu a aprovação de 313 deputados contra 166, entretanto, foi outro, apresentado pelo relator Elmar Nascimento (DEM-BA), cujas alterações, na opinião de especialistas, poderão comprometer não apenas o futuro da Eletrobras diante do desafio mundial de descarbonização, como tornar a geração mais cara e aumentar as distorções do sistema. “As mudanças contidas no texto ‘desmodernizam’ o setor elétrico e o afastam da lógica de economia competitiva”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Associação dos Grandes Consumidores de Energia e de Consumidores Livres (Abrace). “Considerava que a MP original trazia vários benefícios para o mercado, para a Eletrobras, para os consumidores. Mas, da forma como saiu da Câmara, o Brasil perde”, afirma.

Entre as principais modificações que são alvo de críticas estão a criação de reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), de 2 mil megawatts a preço pré-fixado; a prorrogação por 20 anos dos contratos do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), com troca do indexador de reajuste; e a exigência de contratação prévia de 6 mil megawatts de termelétricas movidas a gás, distribuídas entre as regiões Nordeste (1 mil MW, em estado que atualmente não tenha suprimento de gás natural), Norte e Centro-Oeste (5 mil MW). Edvaldo Santana, ex-presidente da Aneel, ilustra que essa última exigência, que busca viabilizar a implantação de gasodutos em regiões que hoje não contam com tal infraestrutura, força consumidores a pagar pelo transporte do gás para longe da captação; para gerar energia distante de onde se concentra a demanda; ao que se somará o custo de transmissão maior para levá-la ao centro de consumo. “É uma fonte de distorção para o sistema. Não faz sentido construção de termelétrica a gás onde não tem gás e há excesso de energia. O Pará, por exemplo, consome apenas 5% da energia gerada na usina de Tucuruí. O restante já vem para o Sudeste”, ilustra.

A Abrace estima que somente essa contratação de energia de termelétricas em quantidade e local pré-definidos pode aumentar a conta dos consumidores em R$ 20 bilhões ao ano; a prorrogação do Proinfra, outros R$ 3 bilhões; e a reserva de mercado para PCHs, outro R$ 1 bilhão por 30 anos. “A ordem de grandeza do aumento de custo para os consumidores com a MP é a mesma do valor da Eletrobras privatizada. Qual o sentido em impor à sociedade uma Eletrobras de custos adicionais para privatizar a companhia? ”, questiona, reforçando ainda a perda de eficiência do setor, “quando o preferível seria que a expansão da produção de PCHs se desse em um processo competitivo, e a expansão de termelétricas se desse por mérito, não por mágica, próximas à saída dos gasodutos de escoamento do gás do pré-sal”. Joisa, do Ceri, lembra que o instrumento que o governo tem para mitigar o aumento do custo da energia para os consumidores é exatamente o de amortecer essa alta com os recursos da capitalização da empresa, estimados em R$ 25 bilhões. “Dessa forma, o setor fica pegando coisas do passado, jogando para o futuro, e nunca se sabe quanto afinal custará a energia”, diz.

Para Santana, “mesmo que o custo das medidas previstas na MP fosse menor, ainda assim estaríamos desmoralizando o setor elétrico”. Ele ressalta que, se a necessidade do país é de ampliação de gasoduto, o planejador (EPE) é quem deveria defini-la; se é preciso mais termelétrica a gás na base, o operador (ONS) é o responsável por sinalizar; e se era preciso reduzir tarifa estendendo o contrato do Proinfra, era o regulador (Aneel) quem deveria recomendá-la. “Mas não temos parecer de nenhum desses órgãos” diz.

Joisa lembra que a pressão de segmentos do setor de gás por medidas de estímulo à ampliação de infraestrutura para distribuição desse insumo acontece desde o princípio da tramitação da lei do gás, no governo Temer. Diogo Romeiro, pesquisador do Ceri, recorda que no ano passado chegou a ser aprovada, dentro da lei que trata de risco hidrológico, a criação do Fundo de Expansão dos Gasodutos de Transporte e Escoamento da Produção (Brasduto), financiado com 20% dos recursos do pré-sal que hoje são integralmente destinados ao fundo social de saúde e educação. O Brasduto acabou sendo vetado pelo presidente Bolsonaro, que alegou “vício de iniciativa”, pois não caberia ao presidente sugerir a criação de novas estruturas, além de não apresentar “estimativa do impacto orçamentário e financeiro” das mesmas – tal como acontece com a MP, como aponta Santana.

“Hoje a MP da Eletrobras repete os erros que fizeram do Brasil o país da energia barata e da conta cara”, diz Pedrosa. O executivo aponta que, para o setor produtivo, o novo texto da MP trouxe outro ponto negativo, de amortizar o custo da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) apenas para os consumidores regulados, enquanto as indústrias compram a maior parte de sua energia no mercado livre. “O texto original sinalizava a mudança de uma coisa muito ruim no Brasil para a indústria, que são custos de políticas públicas que entram na CDE. São subsídios dos mais variados que são pagos na conta de energia e que deveriam estar cobertos pelos impostos, porque os impostos nas cadeias produtivas são compensados e não oneram as exportações”, diz, ressaltando o aumento desse custo em meio à crise. “Na tramitação das duas últimas MPs do setor elétrico, a 998 e a 1010, ambas de 2020, a conta da CDE foi aumentada em R$ 2 bilhões, incluindo novos subsídios a determinados grupos e regiões do país. ” Pedrosa explica que essa cobrança é feita na proporção da energia consumida e, como a indústria consome muita energia e usa pouco transporte de energia, tem uma alíquota maior. “Isso representa 5% da conta de um pequeno consumidor, e até 25% da conta de uma grande indústria”, compara.

O texto original da MP previa uma reversão desse processo, alocando recursos para abater a CDE, diminuindo o impacto para a indústria. Mas a proposta do relator jogou todo o benefício no mercado regulado, o que Pedrosa considera um equívoco do ponto de vista econômico. “Mensalmente, os brasileiros consomem três vezes mais energia usada na produção dos bens e serviços que consomem do que na conta de energia na casa. Pelo novo texto da MP, o brasileiro terá 0,5% de benefício tarifário em sua conta de luz, em um ano em que as tarifas poderiam subir até 30%, em troca de tudo ficar mais caro. Na nossa estimativa, o preço do leite, por exemplo, poderá subir até 10%. É uma medida ruim. ”

Para Pedrosa, o ideal é que o Senado consiga resgatar a MP original, o que obriga que o texto volte a votação na Câmara, com prazo apertado: se a MP não tiver aprovação final até 22 de junho, caducará. “Do jeito que está, já há quem defenda que é melhor que caduque”, diz.  

Joisa considera que a possibilidade de reverter a votação da Câmara é baixa, mas também avalia como negativa a aprovação do texto atual. “É um momento estratégico para revisitar contratos, redesenhar o mercado, modernizar. Não poderíamos perdê-lo”, afirma. “Além disso, a Eletrobras é um ativo que qualquer país gostaria de ter, especialmente neste momento que o mundo vive, de transição energética. Que o Congresso ouça a sociedade e colabore para gerar um processo virtuoso de capitalização da empresa”, conclui.

 


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