Especialistas apontam risco de más decisões sobre gasto público comprometerem próximo ciclo de governo

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Os debates em torno do Orçamento de 2022 se aquecem, e com eles a tensão sobre como equacionar um buraco de cerca R$ 87 bilhões em relação ao projeto entregue pelo governo em agosto – conforme cálculos de Manoel Pires e Samuel Pessôa, pesquisadores associados do FGV IBRE –, orquestrando de forma virtuosa a profusão de demandas que vão do pagamento de precatórios à ampliação do Bolsa Família, agora sob o nome de Auxílio Brasil, e que passam pelas demandas políticas tanto de Executivo quanto de Legislativo em ano eleitoral.

Em webinar promovido nesta terça (29/9) pelo FGV IBRE e a Folha de S. Paulo, com moderação de Fernando Canzian, repórter especial do jornal, Paulo Hartung (ex-governador do ES), Fabio Giambiagi (FGV IBRE) e Marcos Mendes (Insper) alertaram que a falta de apoio político do Executivo refletida no resultado de votações no Congresso podem resultar em um arranjo que afete não só as expectativas sobre 2022 como contaminem o horizonte de 2023 adiante. “Se olharmos a derrubada recente de vetos presidenciais (como o que impedia a união de partidos políticos em federação), o resultado da privatização da Eletrobras, a desidratação da PEC Emergencial, para dar alguns exemplos, vemos que o quadro está ruim e pode piorar na direção do próximo ciclo de governo”, afirmou Hartung.

No evento, Hartung, Giambiagi e Mendes defenderam, por um lado, a postergação da votação de reformas como a do Imposto de Renda e da reforma administrativa para 2023. E, de outro, demandaram uma ação rápida para conter o avanço do uso de emendas parlamentares, que este ano estão previstas em R$ 34 bilhões e representam 51% das despesas primárias alocadas para investimento federal. Como apontaram em artigo publicado na Conjuntura Econômica de setembro, metade dos recursos destinados é referente a emendas de relator – recriadas na LDO de 2020, depois de quase 30 anos de serem relacionadas a desvios de recursos na CPI dos Anões do Orçamento, em 1993 –, sobre as quais há pouca transparência, e hoje são conectadas ao orçamento secreto.

Mendes aponta que o gradual aumento da captura orçamentária via emendas se dá a partir do governo Dilma Rousseff, “com a falta da formação de uma coalizão governamental às claras, resultando em uma reação que aumentou o poder do Congresso sobre o Orçamento”, agravando-se no atual governo. “Estamos vendo forças econômicas e políticas trabalhando cada vez mais para garantir suas fatias privadas no orçamento, e estamos vendo cada vez mais interesse individual e político de cada um se sobrepondo ao interesse difuso. Nesse contexto vem ampliação emendas parlamentares, que é um exemplo claro da deterioração de nossa capacidade institucional de gerir as contas públicas” diz.

Marcos Mendes ponta que essa captura acontece em um contexto orçamentário que já é muito desafiador, em um país com características socioeconômicas e políticas como as do Brasil, diz, que induzem crescimento do gasto ao longo do tempo. Ele destaca a importância das regras fiscais no processo de lidar com a pressão por aumento do gasto público, mas ilustra que são tentativas de “segurar o cachorro pelo rabo”, já que sozinhas não são capazes de melhorar a qualidade do gasto público. “De um lado, temos um percentual grande de pobres que demandam alívio imediato para suas necessidades. Nesse campo, tanto se pode responder de forma mais estrutural, aliviando a pobreza junto com medidas na área de educação e saúde que aumentem o capital humano dessas pessoas e as ajudem a sair dela, ou abrir espaço para políticas populistas”, descreve. De outro lado, a desigualdade presente no país implica uma camada de ricos que forma seus grupos de pressão reivindicando privilégios, desonerações, o que também pressiona o orçamento público.

“A segunda característica sociedade brasileira é que modelo político eleitoral que gera muita fragmentação da representação, permitindo a formação de bancadas temáticas, mais interessadas em interesses específicos que no interesse público difuso”, descreve Mendes, citando ainda a pulverização política caracterizada pelo excesso de partidos, o que obriga o Executivo a um exercício contínuo em busca de apoio no Legislativo. “O desafio brasileiro é lidar com seus problemas estruturais e tentar consertar isso ao longo do tempo, sem escorrer para o populismo. Criando regras, ainda que não perfeitas, para limitar e melhorar a qualidade despesas”, diz.

Para Hartung, o mais urgente a fazer é derrubar as emendas de relator, o que demanda a aprovação de uma PEC. Um caminho mais expedito é sua suspensão via STF, onde já corre uma ação, de relatoria da ministra Rosa Weber, questionando a constitucionalidade dessas emendas. “O ideal seria que o Supremo já se posicionasse sobre o caso”, afirma. “Emenda impositiva não faz parte da tradição do presidencialismo brasileiro, alimenta uma certa casta dentro das próprias lideranças do Congresso, e cria real obstáculo para que o presidente tenha ferramentas para compor sua base de sustentação no parlamento, levando em conta a fragmentação do quadro partidário”, diz.

Giambiagi lembra que a ideia de ter uma parcela de recursos distribuída a bases parlamentares é algo que faz parte do jogo democrático, desde que haja delimitações claras do campo. “Estes recursos devem representar uma fração pequena da totalidade. Quando começa a adquirir a dimensão que mostramos no artigo, ultrapassa os limites da razoabilidade. E também precisam de transparência. Sem isso, acende-se o sinal amarelo não apenas para o perigo das contas públicas, mas da confiança do cidadão na democracia representativa”, afirma. Para Mendes, antes mesmo de fixar o que seriam limites adequados para o uso das emendas individual e de bancada, é importante definir a forma como isso se dá. “Uma regra clara seria limitar sua aplicação a programas estabelecidos pelo governo federal. Por exemplo, há o programa de cisternas para a área seca do Nordeste. Se um parlamentar quiser investir nessa área, pode colocar mais dinheiro no programa que já existe, está estruturado e tem governança, ao invés de criar um novo, pulverizando a gestão dos recursos”, diz.

Para conseguir disciplinar esse processo e evitar novas formas de captura, Mendes aponta que é o ideal é ter um governo que comece uma gestão com sua coalizão de governo já montada. “É importante ter definida uma agenda de reformas, e também de prevenção de contrarreformas. E isso passa por formar coalizão de governo com legitimidade eleitoral.” Ele cita como exemplo o governo Temer, que mesmo tendo baixa popularidade conseguiu aprovar uma série de reformas “graças a uma agenda bem definida, suporte de áreas técnicas e boa articulação política”. “Quando houve o escândalo de Joesley Batista (da JBS), e chegou-se à conclusão de que não seria possível aprovar a reforma da Previdência, foi possível rapidamente mudar a agenda, lançando mão de projetos que já estavam na prateleira, e que foram aprovados na sequência”, afirma Mendes, citando a agenda microeconômica voltada ao mercado de crédito, da qual fazem parte o cadastro positivo e a duplicata eletrônica. “Na hora em que se apresenta um programa bem direcionado, claro, com metas e objetivo, ganha-se a opinião pública, legitima-se o programa e com isso políticos têm que vir atrás, especialmente os que estão formando a coalizão de governo.”

Hartung reforça o coro de Mendes. “No presidencialismo de coalizão, o ideal é que o governante eleito componha sua base de apoio no parlamento no primeiro ciclo de seu governo. As boas experiências vêm daí. O atual governo só foi compor base no parlamento no segundo ciclo. Normalmente, é muito mais complexo, caro e de retorno duvidoso”, diz. Ao que ele soma, como elemento desestruturante, o alto nível de substituição no Congresso em 2018, que considera que esteve longe de um processo de efetiva renovação. Para Hartung, sem uma coalizão forte, perde-se tração para governar. “Precisamos discutir isso profundamente, até porque vimos de um ciclo longo de desajustes no nosso país, que tropeça nas próprias pernas, mesmo cheio de oportunidades em cima da mesa, como a retomada verde, a demanda por infraestrutura, que gera o emprego que estamos precisando tanto.”

Por agora, entretanto, Hartung aponta que o melhor é ter cautela, e deixar os temas estruturais da agenda de reformas para 2023. “Torço para que as lideranças parlamentares, da Câmara e do Senado, desacelerem o processo decisório. É preciso que as lideranças reflitam que o ambiente não está bom”, diz. “O Brasil é um país de perder tempo. Mas não querer perder tempo agora poderá significar obstáculos para mudanças que precisam ser feitas no país e que já deveriam ter sido feitas há década e meia atrás.”

Giambiagi reforça a mensagem, dizendo que o ideal no momento é “aprovar o Orçamento de 2002, se possível até dezembro, e deixar questões estruturais para serem aprovadas a partir de 2023”. Reconhecendo, afirma, que isso também será um problema na próxima gestão. “A agenda para 2023 se torna hercúlea, porque algumas questões ficam, e outras vão se agravando”, diz. Para Giambiagi, o ideal é deixar de criar gastos obrigatórios onde não é preciso e eventualmente fazer uma limpeza de outros gastos obrigatórios que já não são mais adequados – como já havia apontado em entrevista à Conjuntura Econômica. “Por exemplo, acabar com abono salarial que não serve para atacar a miséria e a desigualdade, com o qual se gasta R$ 20 bilhões por ano, quando ao mesmo tempo a gente quer criar novas despesas sociais totalmente legítimas, é algo que tem que ser colocado”, diz. “E, especialmente, evitar saídas casuísticas, como pagar despesas fora do teto para abrir espaço par amais emendas.”

 Reveja o webinar As Emendas Parlamentares e a Captura do Orçamento

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir