“Enquanto o mundo defende a elaboração de políticas públicas com base em evidências, desprezamos o Censo e o IBGE”

Roberto Olinto – pesquisador associado do FGV IBRE, ex-presidente do IBGE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A atividade do IBGE é constantemente marcada por restrições em seu financiamento. Como contextualizar este novo corte orçamentário, que inviabiliza a realização do Censo? 

Historicamente, o IBGE não conta com um orçamento garantido para nenhuma atividade, seja uma pesquisa corrente, seja uma grande pesquisa como a do Censo Demográfico. Tudo tem de ser levado e discutido dentro do orçamento da União. Isso tem exigido das direções do IBGE um comportamento não apenas técnico, mas de negociação junto a secretários dos ministérios, comissões de Orçamento, e mesmo o Congresso com um todo. O que é complicadíssimo no dia a dia, pois envolve um gasto de tempo e energia com atividades fora do propósito do Instituto. 

O Censo Demográfico é composto de duas operações: o Censo propriamente dito, no ano zero, e a contagem da população no ano 5, que atualiza os dados. Não tivemos a contagem de 2015, para correção dos dados do Censo de 2010, por falta de orçamento. Em 2015 também não tivemos o Censo Agropecuário, que acabou sendo feito em 2017, com recursos de fora do orçamento da União, obtidos através de emenda parlamentar. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) também foi adiada várias vezes. Então, de algum tempo para cá várias pesquisas do IBGE são acertadas desse jeito, sem prioridades. E algumas não avançam por falta de pessoal e por falta de orçamento; não se abre concurso porque não se quer gastar mais dinheiro, e sem concurso o IBGE não pode avançar nas suas pesquisas porque precisa de gente. 

Essa dinâmica desaguou neste ano. Simplesmente, o Censo Demográfico foi considerado de menor importância. Mesmo que se admitisse um adiamento do Censo para 2022, o corte orçamentário de R$ 2 bilhões para R$ 71,1 milhões deve inviabilizar as atividades prévias que precisam ser feitas este ano, como contratar pessoas e atualizar o cadastro de endereços. Com esse corte radical, o risco não é só de adiamento, mas de inviabilização. E a pergunta que fica é: será que algum governo se preocupará em assegurar a realização das operações estatísticas fundamentais para este país de forma segura? 

Devido à pandemia, sua posição já era de que o Censo seja adiado para 2022, certo? 

Sim. O Censo já foi adiado de 2020 para 2021 pela questão da pandemia. Havia uma ignorância muito grande sobre o que estava acontecendo, e obviamente foi melhor. Primeiro, para proteção de todo mundo, e segundo porque era pouco provável que as pessoas recebessem alguém nas suas casas. Quando viramos o ano, observamos um quadro até pior do que o de 2020. Hoje temos uma onda de contágio muito mais violenta, que por si só já justificaria um novo adiamento, como defendo. E discordo radicalmente da posição da atual direção do IBGE, de que se pode garantir a qualidade dessa pesquisa fazendo-a por telefone e internet. A experiência da PNAD Contínua, com uso de telefone, já mostrou não ser boa. Além disso, fazer as pesquisas em meio à pandemia poderia resultar em um retrato deformado da realidade, já que muitas pessoas podem ter mudado de casa temporariamente, às vezes de município. 

Esse é o dilema entre ter um Censo malfeito ou adiar novamente, para um momento em que se possa garantir uma qualidade melhor. Veja, um trabalho como o Censo, quando iniciado, não pode ser interrompido, adiado. Em outros países – menores, obviamente –, o Censo chega a ser realizado em um dia. Todo mundo fica em casa, vai uma multidão de recenseadores para a rua, e tudo se resolve naquele dia. Aqui, ele tem de ser realizado em dois meses, agosto e setembro, para se ter uma referência do Brasil no meio do referido ano. Na atual situação, com a vacinação se mostrando lenta e problemática, e o alto nível de contágio, seria difícil realizar as pesquisas. A isso soma-se o fato de que as pessoas estão cansadas, traumatizadas, magoadas. Entrevistar pessoas nessa condição é provocar uma resposta ruim.

Além disso, é preciso lembrar que o orçamento do IBGE já havia sido cortado em 2019, de R$ 3,6 bilhões – dos quais R$ 3,1 bi eram para o ano da operação do Censo – para R$ 2,3 bilhões, o que tinha sido aceito pela direção do IBGE. E já se questionava se esse orçamento seria suficiente para se fazer um Censo de boa qualidade, capaz de enfrentar os problemas que se tem nesse trabalho. Quando se coloca uma operação do tamanho dessa em campo, podem acontecer mil problemas: quebra máquina, tem recenseador que fica doente, a pesquisa de avaliação no fim do Censo pode indicar que determinadas áreas não foram bem cobertas, e é preciso voltar lá. Isso tudo tem um custo. 

E agora temos o terceiro problema, que é fato consumado: o Censo foi desprezado, o IBGE foi desprezado. E acho que, a despeito de minha opinião sobre sua gestão, a direção do IBGE foi humilhada. Qualquer presidente do IBGE sairia neste momento, porque não é possível cumprir sua obrigação de fazer o Censo.  O Congresso Nacional, ao fazer o que fez com o orçamento do IBGE, disse: vocês são irrelevantes, o censo é irrelevante, mais importante são as emendas parlamentares, e a única solução possível para quem está na direção do IBGE é sair. Mas sair buscando fazer algo pelo IBGE, alegando claramente: estão inviabilizando o dever de cumprir esta missão, que está na Constituição.

O que resta no momento é que as pessoas se unam, não só em defesa do Censo, mas de que se tenha um sistema de estatísticas financiado, seguro, para manter o país informado. E até para que outros economistas questionem suas pesquisas. Não importa. 

Como garantir financiamento adequado para as atividades do IBGE?

Acho que o caminho passa, por um lado, por assegurar sua credibilidade, para que a população enxergue o instituto de estatística. O que significa isso? É uma discussão que tive enquanto presidente, que tivemos em entrevista para a revista Conjuntura Econômica em 2019, e que é internacional. O instituto de estatística tem que mudar sua narrativa para uma que não seja essencialmente técnica. O instituto é democrático quando a narrativa na divulgação de dados é acessível e compreensível por toda a população.

Um segundo ponto é uma mudança na lei de estatística brasileira. Temos que modernizá-la, para garantir determinadas coisas como fundos para as pesquisas e estabilidade na presidência do seu órgão. O presidente do IBGE tem que ser escolhido, tal como em outros países, por seleção autônoma. Na Inglaterra, por exemplo, é uma firma privada quem faz essa seleção, com base em critérios bem definidos. Em outros países, os mandatos e requisitos desse cargo também estão claramente definidos. Isso também é importante para a credibilidade do instituto. Então, tem que se modernizar a lei, gerar fundos, mudar a narrativa, e dar estabilidade para a gestão.

Quais as principais implicações do atraso no Censo?

A grande questão não é só ter ou não o Censo. Mas saber que o IBGE, e o Brasil, vem sistematicamente perdendo informação. E é preciso encarar essa situação agora, pois chegamos no fundo do poço.

Veja, não ter tido a contagem da população em 2015 já trouxe implicações para o fundo de participação dos municípios (FPM), por exemplo. Eu ainda presidia o IBGE (2017-18) quando houve uma lei que congelou o FPM, porque observou-se que a falta da contagem já estava afetando o modelo de estimação demográfica municipal. Assim a decisão foi congelar o FPM para esperar o Censo 2020. 

Mas a lista de coisas que hoje me preocupam vai além. Sem o Censo, não teremos uma descrição que possa alimentar o SUS em sua rede de atendimento. O SUS tem que saber onde estão as pessoas, sua idade, para planejar onde vai botar hospital, alocar médicos, enfermeiros. Sem isso, o SUS depende da informação de prefeitos – que pode ser tendenciosa, já que o número de pessoas é base para determinar o repasse federal. O mesmo acontece para o planejamento de escolas municipais. É preciso saber quantas crianças estão nascendo, quantas vão crescer, quantas vão entrar no ensino básico, quantas vão ao fundamental. Só assim município e estado podem planejar a rede educacional. Um tema que foi tirado do questionário do Censo em 2019, mas que era importante, são os aluguéis: quem está vivendo de aluguel, sua faixa de renda, o valor que paga, pois com base nisso se faz política habitacional. Até os Correios precisam do Censo para precisa planejar sua rede. Tudo isso está indo por água abaixo.

O mais curioso é que, enquanto no mundo cresce a defesa de elaboração de políticas públicas com base em evidências, rumamos na direção oposta, pois desprezamos o Censo e o IBGE. Sem eles, faremos política pública no faro, no chute. É uma enorme tragédia de informação e política. As pessoas não e estão enxergando isso, pois acham que é exagero corporativo do setor público. E veja: em qualquer país do mundo a grande estatística, que é sempre complicada e cara, é realizada por uma instituição de Estado.

Qual o impacto da pandemia para o trabalho estatístico feito pelo IBGE?

No Brasil, ela sinalizou claramente que se tem dado zero atenção à questão de se ter um sistema modernizado, principalmente integrando os diversos produtores. Veja o que aconteceu na hora de se criar o sistema de pagamento do auxílio emergencial. As bases de dados eram limitadas, o que provocou uma série de confusões iniciais. 

Cada vez mais, a ideia é de integração de informações. Isso significa trabalhar, seja na estatística econômica, seja na social, aproveitando tudo que é feito. Hoje, no Brasil, há feudos que produzem informação, mas não a compartilham. E precisamos caminhar para essa visão integrada, que demanda inclusive padronização. Ou seja, usar os mesmos conceitos e classificações, por exemplo, de família, de trabalho.

Um exemplo nessa direção é a adoção de um número único de identificação. Pouca gente discute isso. Ou seja, cada pessoa, ao nascer, recebe um número que levará para o resto da vida, e que conterá todas as informações: carteira de identidade, motorista, Imposto de Renda, tipo sanguíneo, todas as que forem necessárias para o dia a dia da pessoa. E para isso é preciso integrar bases de dados, unificar o sistema de informação.

Veja, pequenos países como Holanda, Noruega e Suécia não fazem mais Censo. Por quê? Primeiro, porque são pequenos. Mas também porque eles têm uma base demográfica que permite saber a informação das pessoas sem necessitar coleta. Quando uma pessoa se matrícula em uma escola, isso já entra na base geral de dados. O mesmo acontece quando essa pessoa muda de residência, ou com sua ficha médica – obviamente, com todo o sigilo protegido, e graças ao número único. Aqui, por exemplo, o sistema do SUS têm registrados todos os remédios que uma pessoa toma que saem da farmácia popular, que é um avanço. Mas é uma base que não se integra com outras. Esse é um caminho que, se não pode substituir o Censo, poderia melhorá-lo. E esse é o futuro. O de um IBGE apoiado por outros órgãos.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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