Em Foco

Anseios no meio da pandemia

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Si un pueblo protesta y marcha en medio de una pandemia, es porque su gobierno es mas peligroso que el vírus.

Policia, usted y yo juramos proteger al pueblo. No dispare.

Como essas, milhares de faixas, pedaços de papelão fazendo o papel de placas, foram estampadas nos principais meios de comunicação nas manifestações que sacodem a Colômbia e que já deixaram mais de 40 mortos.

Tudo começou com projeto do governo para aumentar impostos, taxando a renda e os produtos básicos. Pelos cálculos governista, se aprovada, a reforma tributária arrecadaria 2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país que, em 2020, recuou 6,8% em relação a 2019. Também a renda per capita no país encolheu 7,8% de um ano para o outro, reflexo da pandemia que jogou milhões de colombianos para a linha da pobreza: cálculos preliminares apontam para um contingente de 42,5% dos 51,3 milhões de habitantes, enquanto 2,8 milhões estariam na linha da extrema pobreza. Com a pandemia, o caixa do governo colombiano murchou, como ocorreu na maioria dos países da região

PIB per capita
(PPP, preços constantes)


PPP: paridade do poder de compra. Fonte: FMI – World Economic Outlook Database.

No Brasil, como em outros lugares, a pandemia também está cobrando um alto preço, além das 430 mil mortes. Milhões de brasileiros foram jogados na pobreza e os dados sobre as pessoas que passam fome ou estão em risco de ficar sem ter o que comer, cresceram significativamente.

Como escrevi no Em Foco de 9 de abril – Odeio esse vírus –, lançando mão de um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), a porcentagem de pessoas que estavam seguras de não passar fome em 2004, que era de 77,1% dos pesquisados, desabou para 44,8%, em 2020. Quem estava no que se chamou de Insegurança Alimentar Leve, subiu de 12,6% para 34,7%, acendendo um sinal amarelo de que as coisas não caminhavam bem. E o contingente que se enquadrava no que se denominou de Insegurança Alimentar Grave, quer dizer, os que passam fome, avançou de 4,2% para 9%, no período de 2014 a 2020 (ver relatório completo do estudo). Nessa mesma trilha, estudo do FGV Social mostrou que em fevereiro deste ano 27 milhões de brasileiros estavam na linha da pobreza, ante os 9,5 milhões de agosto de 2020. Números que, seguramente, devem ter piorado com a segunda onda da COVID-19.

A Colômbia me lembra, guardada as devidas proporções, o Brasil e o Chile. Este, de outubro 2019, quando cerca de um milhão de chilenos foram às ruas para protestar contra o aumento das passagens do metrô. As manifestações, que deixaram 39 mortos, segundo dados do governo, acabaram desaguando para outras reivindicações. Em 2013, a intenção de aumentar em R$ 0,20 as passagens de ônibus em São Paulo, levou milhões de brasileiros às ruas. A violenta repressão policial das primeiras manifestações, acabou aumentando a legião de insatisfeitos. Do preço da passagem, outras reivindicações foram, paulatinamente, surgindo, como o fim da corrupção, a melhoria dos serviços públicos, uma melhor aplicação de recursos públicos, entre outras.

No mesmo dia em que as pessoas foram às ruas, ainda em pequeno número, o Instituto Datafolha foi à caça de respostas. Três dias após a primeira manifestação, saiu pesquisa mostrando que algo estava fora da curva. A popularidade da presidente Dilma havia caído 8 pontos, o primeiro tombo desde a sua posse em 2011. E foi detectado um aumento do pessimismo dos brasileiros com o futuro, de uma forma geral. Um sinal que quase ninguém levou muito à sério, ou não soube avaliar, já que de lá para cá a pauta de costumes, o fortalecimento da extrema direita, a descrença na classe política, os desacertos dos 14 anos de governo petistas, entre outros fatores, levaram à eleição de Jair Bolsonaro, contra todos os prognósticos dos cientistas políticos que afirmavam que o capitão não passaria do primeiro turno.

Mas voltando a Colômbia, como ocorreu aqui em 2013 e no Chile em 2019, a pauta foi engordando. Da reforma tributária, embrião das manifestações – acabou sendo retirada pelo governo, levando a demissão do ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla –, mais sete pontos passaram a ser desfraldados.

Os manifestantes são contrários à proposta do governo de permitir a compra e importação de vacinas pela iniciativa privada – o que, segundo eles, favoreceria às empresas, e não a população, que ficaria dependente da lentidão da resposta do sistema público.  O governo do presidente Ivan Duque tem fortes laços com a elite empresarial colombiana. No Brasil já se tento – ainda não desistiram –, da compra de vacinas pela iniciativa privada.

Como a maioria dos países da América do Sul, à exceção do Chile e do Uruguai, a vacinação é lenta. A Colômbia só vacinou com duas doses 2,25 milhões de pessoas, algo ao redor de 5% da população, segundo dados do Our World in Data. Na corrida por vacinas, mais de 80% dos imunizantes produzidos ou a serem fabricados pelos laboratórios, foram adquiridos pelos países ricos.

Há um forte temor de que as manifestações embiquem ainda mais para cima as curvas de contágios e mortes pela pandemia. Até o último dia 11, 79.261 colombianos haviam sucumbido pela doença, e os indicadores de novos casos de mortes estão em patamares elevados.

Total de pessoas imunizadas
(% em relação a população)

*Posição em 12/05. **Posição em 11/05. ***Posição em 10/05.
Fonte: Our World in Data. Não há dados disponíveis para a Venezuela e para Guiana Francesa. Receberam duas doses da vacina.

Os outros pontos que foram engordando a pauta de reivindicações:

• Pedem a criação de uma renda básica de, pelo menos, um salário mínimo durante seis meses, para os mais pobres, vulneráveis e afetados pela pandemia. O que é recorrente por aqui, com propostas de reformulação dos programas de assistência social. Um desses trabalhos, encomendado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas - CDPP -, aos economistas Fernando Veloso, pesquisador do FGV IBRE, Vinicius Botelho, ex-pesquisador do FGV IBRE e Marcos Mendes, pesquisador do Insper, propõe o redesenho dos atuais programas sociais, com a fusão do Bolsa Família com programas de desenho antiquado e baixa capacidade de redução da pobreza e desigualdade de renda.

Segundo os pesquisadores, estima-se uma redução entre 11% a 24% da pobreza atual com o redesenho da estrutura de benefícios, sem necessidade de um orçamento adicional, além de passar a atender 95% das famílias que, atualmente, não tem nenhuma proteção social (ver a íntegra do trabalho).

• Pedem a defesa da produção nacional agropecuária, industrial e artesanal, com programa público de compra da produção agropecuária interna. Hoje, 25% da população colombiana vive em áreas agrícolas, onde as elites detêm grandes extensões de terras e os colonos são expulsos para terras de baixa produtividade, sem infraestrutura e agravamento da pobreza. Também estão expostos ao cultivo extensivo de coca que tem se expandido no país. Muitos pequenos produtores tiram seu sustento das plantações de coca.

Isso lembra, ainda que com muitas diferenças, o papel que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), criada em 1990 no governo Fernando Collor, como reguladora do mercado para manter os estoques de produtos, comprados basicamente da agricultura familiar. A ideia era que, sempre que ocorresse escassez de um determinado produto, os estoques da Conab seriam jogados no mercado para impedir a alta de preços.

A atuação da Conab foi perdendo força e importância nos últimos anos. Em 2019, por exemplo, 27 armazéns da companhia foram fechados. Com isso, hoje quase não há estoques armazenados. Em uma década, os estoques públicos de alimentos tiveram uma redução de 96% na média anual. Não há mais estoques de feijão, de soja, por exemplo. Há os que ainda resistem, com poucas sacas armazenadas.

Estoques reguladores de alimentos
(em toneladas)


Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Pedem subsídios para pequenas e médias empresas, um dos assuntos também recorrentes no Brasil

Pedem mudanças no sistema educacional, para facilitar o acesso ao ensino até a universidade

Defendem a inclusão social, desde a diversidade sexual até a étnica

São contra o processo de privatização

Ao olharmos as reivindicações que foram crescendo na Colômbia, há muita semelhança com o que sempre se pede por aqui. Na concessão de subsídios, que foram fartamente liberados em passado recente, na criação de uma rede de proteção social mais eficiente e menos desigual, especialmente pelos estragos causados pela pandemia, na inclusão social de gênero, diversidade sexual e racial, na melhora na educação. São anseios comuns a muitos países da América do Sul, e de outras partes do mundo, amplificados pela onda de casos e mortes trazidos pelo novo coronavirus, por falhas no combate à pandemia, escassez de recursos, alta concentração de renda, desemprego, economia andando de lado, como gostam de falar os economistas quando a atividade econômica não decola. A região ficou mais pobre e o fosso em relação aos países mais desenvolvidos se alargou.

É como estivéssemos sentados em um barril de pólvora que, a qualquer momento, pode explodir. Só não se sabe aonde.  

Agradeço à Silvia Matos pela compilação e fornecimento de dados para a elaboração do gráfico sobre o PIB.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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