Em Foco

O feitiço do tempo

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

A semana começou com muita notícia ruim. A catástrofe sanitária que assola a Índia, como mencionado no Em Foco da semana passada, está piorando, com mais de 300 mil casos de infectados por dia, e um número de mortes que, com certeza, está subavaliado (muitas previsões indicam que perto de 1 milhão de indianos já perderam a vida nesta pandemia). A crise sanitária na Índia pode estancar, ou atrasar, a chegada ao Brasil de insumos necessários para a produção da vacina da AstraZeneca: o governo de lá suspendeu as exportações, temporariamente, tanto das vacinas prontas como do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo), o componente necessário para a produção.

O Ministério da Saúde reviu para baixo a entrega de vacinas para este primeiro semestre: de 205,897 milhões caiu para 159,448 milhões, uma redução de 22,5%. Que corre o risco de não ser cumprido, pela crise na Índia e escassez de vacinas mundo afora.

Além da falta de vacinas para a primeira dose – até ontem pouco mais de 19% da população brasileira havia recebido pelo menos uma dose –, um outro problema surgiu: em várias localidades não há vacina para a segunda dose, já que, seguindo orientação do Ministério da Saúde de março, muitos municípios não guardaram o imunizante, com a promessa de que haveria garantia de entrega. O próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, admitiu que há dificuldades em se ter vacinas suficientes para essa segunda dose.

A esperança de que a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovasse o uso emergencial da russa Sputinik V caiu por terra na segunda-feira (26). A equipe técnica da agência recusou o uso pela ausência de documentação e a existência do que chamaram de adenovírus replicante na vacina – que não deveria se replicar –, que foi classificado como um fator grave. A previsão era de se importar 30 milhões de doses da Sputinik. O Fundo Soberano Russo, que financiou o desenvolvimento da vacina, criticou a decisão da Anvisa, alegando que mais de 62 países já utilizam o imunizante. As agências regulatórias dos Estados Unidos (FDA) e da Europa (EMA), tidas como referência mundial, não aprovaram a Sputinik até agora.

Outro fato para nos deixar mais tensos e piorar as esperanças. Apesar da vacinação, ainda que lenta na maioria dos países, o número de casos e mortes no mundo voltou a embicar para cima, recentemente. Do total de novas contaminações no planeta – chegamos a 900 mil nas últimas 24 horas –, a Índia tem sido responsável, recentemente, em média, por 40% desses casos.

Casos e mortes no mundo


Fonte: Worldometer. Média móvel dos últimos 7 dias.

 

Casos e mortes na Índia


Fonte: Worldometer. Média móvel dos últimos 7 dias.

 

Doses aplicadas por continente
(% em relação à população)


Fonte: Our World Data. Atualizado até 28/4/2021.

No meio de tanta notícia ruim, algumas alentadoras. Depois de cerca de cinco meses, o Brasil conseguiu reduzir a taxa de contágio do coronavírus, segundo a Universidade Imperial College: na semana que começou no último dia 26, a taxa de contágio ficou em 0,93 – sempre que esse indicador fica abaixo de 1, a disseminação do vírus é considerada em desaceleração. A média móvel no país de casos e mortes, depois de abril ser o pior mês da pandemia, iniciou um processo de queda, mas ainda em patamares muito elevados. No caso das mortes, a média móvel estava, ontem, em 2.523 óbitos por dia.

Casos e mortes no Brasil


Fonte: Worldometer. Média móvel dos últimos 7 dias.

Estudos continuam mostrando que tem havido menos internações e mortes no grupo de idosos que tomaram a vacina.

Com isso, por aqui todas as fichas estão concentradas no segundo semestre. Se o cronograma do Ministério da Saúde for cumprido, haverá vacinas suficientes para imunizar quase toda a população: está prevista a entrega de mais de 355 milhões de doses de vacina.

Outro elemento favorável no caminho à uma relativa normalidade são as projeções de crescimento da economia norte-americana para 2021, em 6,4%, e da China, de 8,4%, segundo previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI), o que pode melhorar o comércio mundial. As estimativas supõem que a pandemia estará controlada, pelo menos, nos países de alta renda e na maioria dos países de renda média-alta, como avalia a pesquisadora associado do FGV IBRE, Lia Valls, em artigo a ser publicado na próxima edição da revista Conjuntura Econômica.

Outro ponto favorável, embora a Anvisa não tenha aprovado o início de testes da Butanvac, alegando falta de documentos e informações, é o início de produção dessa vacina pelo Butantan – uma aposta para se ter um imunizante nacional para combater o vírus –, aguardando o aval da agência para iniciar os testes clínicos. Segundo o Instituto, já estão sendo produzidas 1 milhão de doses, com a expectativa de que o país se torne autossuficiente. Mas ainda é cedo para comemorar, pois tudo depende da avaliação da Anvisa, e só teremos a nova vacina, na melhor das hipóteses, no último trimestre do ano.

Mas a vida voltará ao normal pré-pandemia ou estaremos ingressando no que se denominou de novo normal, ainda mantendo certo distanciamento social, usando máscaras, evitando restaurantes, cinemas, teatros, viagens? Há risco de uma terceira onda? Haverá necessidade de se aplicar outras doses da vacina, como é o caso da gripe e de outras doenças? Haverá imunizantes suficientes para isso? São dúvidas que irão determinar o futuro próximo.

Enquanto há uma corrida por vacinas, assistimos a um esforço hercúleo para tratar e salvar vidas ante a pandemia que, sorrateiramente, tem afetado o emocional de milhões de pessoas. Depressão, esgotamento físico, letargia, dificuldades de concentração, tristeza. Tudo isso quase todos sentimos ao longo dessa pandemia. Mas há um novo mal que tem afetado as pessoas: é o que se chamou de definhamento, termo cunhado por um sociólogo chamado Corey Keyes.

Em 2020, quando a pandemia eclodiu, procuramos enfrentá-la com as armas que dispúnhamos: uso de máscaras, isolamento, higienização das mãos e das compras que chegavam. Era a forma de nos proteger e aguardar o arrefecimento da pandemia. É como se o cérebro tivesse emitido um sinal de alerta contra o perigo iminente.

No segundo semestre, com sinais de redução do contágio e mortes, a esperança se renovou, já que o vírus parecia ter sido domado e, com a vacinação, sairíamos do isolamento e a vida voltaria, se não totalmente, em grande parte ao normal. É como se nosso cérebro desarmasse o alerta de perigo, ainda que não completamente. Por aqui, a economia começou a se recuperar, levando muitos economistas a acreditarem que o país teria uma recuperação em V, ou seja, a atividade econômica voltaria com grande vigor já neste ano, depois da queda de 4,1% em 2020. E alguns indicadores econômicos de janeiro e fevereiro sinalizavam para isso. Era, enfim, a progressiva volta à normalidade.

Mas veio a segunda onda e o abatimento bateu forte nas pessoas e derrubou as previsões de recuperação. Não foi esgotamento, já que havia energia suficiente para o trabalho e demais afazeres. Também não chegou a se caracterizar uma depressão. Foi um sentimento que começou a tomar conta de muitos: a perda da alegria, de objetivos e sem ver a luz no final do túnel. O definhamento, sentimento de estagnação e vazio. A sensação é de que você está se arrastando, dia a dia, vendo a vida passar por uma janela, como mencionado no Em Foco de 26 de março último.

Guardada as devidas proporções, isso me lembra o filme Feitiço do Tempo, com Bill Murray no papel de um repórter que faz previsão do tempo e que chega a uma pequena cidade para fazer uma matéria sobre o Dia da Marmota. Acaba, inexplicavelmente, ficando preso no tempo, sempre vivendo o que acontece naquele dia, numa repetição angustiante dos fatos.

O The New York Times publicou, recentemente, matéria sobre assunto, detalhando a pesquisa de Keyes. Segundo o jornal, “o definhamento é o estado médio negligenciado da saúde mental. É o vazio entre depressão e florescimento – a ausência de bem-estar. Você não tem sintomas de doença mental, mas também não está num quadro de saúde mental. Você não funciona com plena capacidade. O definhamento embota sua motivação, perturba sua capacidade de se concentrar e triplica a probabilidade de você regredir no trabalho. Ele parece ser mais comum que a depressão completa – e, de certas maneiras, pode ser um maior fator de risco para a doença mental”.

E continua afirmando que a pesquisa de Keyes “sugere que as pessoas com maior probabilidade de experimentar grande depressão e transtornos de ansiedade na próxima década não são aquelas que têm esses sintomas hoje. São as pessoas que estão definhando neste momento”.

E novas evidências de profissionais de saúde da pandemia na Itália mostram que as que estavam definhando na primavera de 2020 tinham três vezes maior inclinação que seus pares a ser diagnosticadas com transtorno de estresse pós-traumático.

O maior perigo é que os sintomas podem não ser percebidos, pois quando você está definhando pode não perceber a redução do prazer. “Você não se pega escorregando lentamente para a solidão; você é indiferente à própria indiferença. Quando alguém não pode ver o próprio sofrimento, não busca ajuda ou faz alguma coisa para se ajudar.

Mesmo que você não esteja definhando, provavelmente conhece pessoas que estão. Compreender melhor isso pode ajudar você a ajudá-las “, diz o The New York Times.

Mas há remédio para isso? Como combater essa nova “variante” que afeta nossa saúde mental? Segundo o jornal inglês, “um conceito chamado ‘fluxo’ pode ser um antídoto para o definhamento. Fluxo é aquele efêmero estado de absorção diante de um desafio importante ou uma ligação momentânea, em que sua sensação de tempo e lugar se dilui.

Durante os primeiros dias da pandemia, a melhor previsão de bem-estar não era otimismo ou atenção plena – era o fluxo. As pessoas que mergulhavam mais em seus projetos conseguiam evitar o definhamento e mantinham sua felicidade pré-pandemia”. Atividades como exercícios físicos, leituras, sessão na Netiflix ou outro canal, cursos on-line e outras atividades podem preencher esses vazios.

Ou seja: encontrar novos desafios, experiências agradáveis e trabalho reconfortante são possíveis remédios para o definhamento.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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