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Um exemplo a não ser seguido

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Mais de 145 milhões de casos e 3,1 milhões de mortes foram registrados no mundo até agora, segundo dados do Worldometer, site que mantém atualizado, em tempo real, os números sobre a COVID-19 no planeta.

Recentemente, em alguns países houve uma preocupante aceleração da pandemia, como na Índia e no Brasil, só para mencionar os mais duramente atingidos por essa segunda onda.

A Índia é um exemplo do que não dever ser feito, sendo um triste modelo para os que são contra o isolamento, uso de máscaras, ações populistas, mensagens dúbias dirigidas à população, falta de uma coordenação central no combate à pandemia. Em março, as autoridades indianas anunciaram que a pandemia estava controlada – neste que é o segundo país mais populoso do mundo, com quase 1,4 bilhão de habitantes –,  com base na queda de novos casos que vinha sendo observada desde o pico de setembro do ano passado, quando foram contabilizados mais de 93 mil casos na média móvel de 7 dias. De lá até o mês passado, as infecções recuaram sistematicamente. Em fevereiro, a média móvel despencou para pouco mais de mil casos, enquanto a de mortes, que chegou em setembro a mais de mil, caiu para 93 em 21 de fevereiro. Já em janeiro, o Serum Institute of Indian começou a exportar vacinas – é o maior produtor mundial – para países vizinhos, chegando a enviar doses ao Brasil depois de intensas negociações.

Mas tudo virou de ponta cabeça de uma hora para outra. Este mês, uma forte disseminação do vírus embicou para cima, de forma dramática, a curva no número de novos casos e mortes no país, levando o governo a suspender as exportações de vacinas da AstraZeneca e iniciar um programa de aceleração da vacinação. Na segunda-feira, dia 19, o governo indiano anunciou a ampliação da campanha de vacinação a todos com mais de 18 anos a partir do dia 1º de maio. Também determinou que os laboratórios deverão reservar metade de sua produção para o governo central. Os outros 50% poderão ser negociados com o Estados indianos. Também estão sendo feitos lockdowns em algumas cidades, na tentativa de frear o avanço do vírus.

O país enfrenta, como o Brasil, a mais grave crise sanitária desde que a pandemia começou. Há um progressivo colapso do sistema de saúde, falta de leitos, de medicamentos, oxigênio, doentes aguardando em longas filas por atendimento, necrotérios lotados.

Na última quarta-feira (21), 314.644 novos casos foram confirmados – um recorde desde que a pandemia começou –, com 2.104 mortos, colocando a Índia como responsável por 14% de todos os óbitos no mundo e com 35% dos infectados em apenas 24 horas. Por aqui, parece ter havido um arrefecimento na curva de casos e mortes, embora em patamares elevados, com base nos dados da média móvel dos últimos sete dias. Mas ainda é cedo para saber se essa tendência se manterá (ver gráfico de mortes e novos casos).

Mas o que deu errado, levando a Índia a ter, em média, 200 mil infectados por dia? Novas variantes? Relaxamento nas medidas de segurança sanitária? Pouco empenho do governo frente a pandemia que, acreditava-se, domada?

Um dos fatores para essa aceleração, além dos citados abaixo, é a lenta vacinação no país. Até o último dia 21, a Índia havia aplicado 129,6 milhões de doses de vacinas, apenas 9,3% de sua população. No Brasil, o processo estava mais adiantado: 34,1 milhões de doses, 15,9% da população. Esses números, segundo o consórcio de veículos de imprensa a partir de dados coletados junto às secretarias de saúde dos estados, subiu para 38,4 milhões, ontem: 27,5 milhões receberam a primeira dose da vacina, enquanto 10,9 milhões, a segunda.

Vacinação no mundo
(Países selecionados)


Fonte: Worldometer e elaboração própria. Total de doses aplicadas. Dados atualizados até 21 de abril.

Outros fatos podem explicar essa explosão, como mostrou reportagem feita pelo UOL, site de notícias em tempo real. Em fevereiro, foram anunciadas importantes eleições em cinco estados, para 824 cargos que seriam escolhidos por 186 milhões de indianos. No final de março, foi dado aval para que a campanha eleitoral se entendesse por mais um mês. A campanha começou a todo vapor, sem nenhum protocolo de segurança.

Na metade de março, outro evento: foi autorizada a realização de duas partidas de críquete, esporte popular na Índia, herdado da colonização inglesa. Mais de 130 mil torcedores, a maioria sem máscaras, puderam assistir a duas partidas entre as equipes da Índia e da Inglaterra.

E este mês, já com a pandemia se espalhando rapidamente, milhões de indianos desceram para o rio Ganges, na cidade de Haridwar, para mergulharem em suas águas poluídas durante o festival Kumbh Mela, a maior peregrinação do mundo ( a segunda é o Airban, no Iraque, de muçulmanos xiitas, com cerca de 20 milhões de pessoas), que ocorre a cada quatro anos, no espaço de doze anos, em quatro cidades indianas, que se revezam. O festival, declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humidade pela UNESCO, chega a reunir 100 milhões de indianos durante algumas semanas – sem máscaras e com higiene precária -, o que é a receita perfeita para o desastre que a Índia atravessa, como me lembrou Braulio Borges, pesquisador-associado do FGV IBRE. Os praticantes do hinduísmo acreditam que o Ganges é sagrado e se banhar em suas aguas purificará seus pecados e trará a salvação.

Também a realização de casamentos suntuosos, uma tradição no país, e a pressão de políticos e empresários para que a economia volte a funcionar, com a anuência de um governo com fortes traços populistas, tem levado a essa catástrofe sanitária.

Parece claro que essa avassaladora segunda onda na Índia foi alimentada por mensagens mistas do governo permitindo reuniões, encontros religiosos e esportivos, comícios políticos, pressão para que a atividade econômica voltasse a funcionar sem grandes restrições, além das pessoas que, incentivadas, baixaram a guarda. É evidente que uma segunda onda no país parecia ser inevitável, como ocorre em todo o planeta, mas seus efeitos poderiam ser bem menos devastadores se as medidas sanitárias fossem seguidas.

Com o aumento dos casos, a Índia que, junto com o Brasil representava quase 40% das mortes do mundo – Brasil, com 25% e a Índia, com 15%, até recentemente –, tende a engordar ainda mais esses números.

Média móvel de casos e mortes – COVID-19


Fonte: Worldometer. Média móvel dos últimos 7 dias.

A repentina explosão da pandemia derruba qualquer previsão que for feita sobre a recuperação econômica mundial. Um dos vários impactos negativos dessa segunda onda na Índia, poderá ser uma revisão para baixo do crescimento do país que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) estimou em março: o Produto Interno Bruto (PIB) deveria crescer 12,6%, o mais alto entre todos os países pesquisados.

 Mas, apesar dos desafios para domar o vírus, como a Índia acreditou ter conseguido, muitos países desenvolvidos têm conseguido minimizar os impactos dessa crise sanitária na economia.

O FGV IBRE, em parceria com o Instituto Econômico Suíço KOF, acompanha a economia mundial através, entre outros indicadores, do Indicador Barômetros Globais da Economia que, em abril, pelo segundo mês consecutivo, mostrou uma significativa alta. O destaque, além da China, que poderá crescer até 9% este ano, como estima o pesquisador-associado do FGV IBRE, Lívio Ribeiro – a OCDE projetou, em março, crescimento de 7,8% –, são os Estados Unidos, onde o pacote de US$ 1,9 trilhão do presidente Joe Biden tem gerado grande otimismo: o setor de serviços, por exemplo, acompanhado através do indicador Institute of Supply Management, atingiu um pico de 63,7 pontos no mês passado, o maior já registrado na série histórica. Também a geração de empregos tem se expandido, o que evidencia uma robusta recuperação da economia norte-americana daqui para frente. As projeções da OCDE são de que a economia feche 2021 com um crescimento de 6,5%.

Também na Zona do euro, onde o início da vacinação foi vagaroso e ainda não engatou por completo, os números mostram uma tendência de maior vigor na atividade econômica, se espraiando para os países, com destaque para a Alemanha. Levando em conta os estímulos fiscais e monetárias injetados pelos governos, aliados a uma maior oferta de vacinas no segundo semestre, é de se esperar uma expansão mais robusta dessas economias, desde que não surjam novas surpresas. Em março, a OCDE revisou seus números de crescimento da economia mundial de 4,2% para 5,6% neste ano.

Na contramão de tudo isso, a economia brasileira, depois de apresentar alguns sinais de recuperação em fevereiro, voltou a mostrar números desanimadores em março, o que deve se repetir em abril. Mesmo com a recuperação mundial, segundo relatório da OCDE o Brasil é a única grande economia em desaceleração neste começo de ano: em março a economia brasileira recuou 0,32% em relação a fevereiro. No grupo das sete maiores economias, foi estimada uma alta de 0,72%.

A última previsão da OCDE sobre o crescimento mundial, feita no começo do mês passado, estimava que o Brasil fecharia o ano com um crescimento de 3,6%. Já o Boletim Macro IBRE, projeta uma expansão do PIB de 3,2%.

Crescimento mundial em 2021


Fonte: OCDE. Crescimento em relação a 2020, em porcentagem.

Mas tudo isso vai depender de que forma se comportará a pandemia e seu combate, se teremos vacinas suficientes para imunizar a população. Também é prioritário fazer alguns deveres de casa: equacionar a crise fiscal, reduzir as tensões políticas, mudar radicalmente a postura diplomática, já que estamos cada vez mais isolados do mundo, além de um novo posicionamento ambiental, o que vem sendo cobrado sistematicamente pela administração Biden e outros países desenvolvidos. Além de entidades que reúnem vários segmentos da economia brasileira que pressionam o governo para que apresente metas concretas contra o desmatamento e a defesa do meio ambiente.

Ontem (22), no primeiro dia da Cúpula do Clima, organizada pelo presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, o presidente Bolsonaro fez um discurso, mais cauteloso, se comprometendo a zerar o desmatamento ilegal até 2030, cortar emissões de carbono em 37% até 2025 e em 43% até 2030. Também disse que duplicou o total de recursos destinados à fiscalização ambiental. E pediu ajuda financeira para atingir essas metas. Biden não acompanhou o discurso. Embora mais moderado, a fala foi recebida com certo ceticismo por líderes e organizações internacionais, que aguardam ações mais concretas do governo brasileiro.

Na Cúpula do Clima, também foi anunciada a criação de um fundo bilionário formado pelos Estados Unidos, Reino Unido, Noruega e empresas privadas para reduzir as emissões de gases-estufa no planeta, gerados pelo desmatamento em nações com florestas. O fundo já conta com recursos da ordem de US$ 1 bilhão e será destinado a países que já estejam reduzindo o desmatamento e tenham políticas concretas de combate a queima e derrubada de florestas. O que não é, por enquanto, o caso do Brasil. Em março, a área destruída na Amazônia foi a pior dos últimos dez anos e a área desmatada triplicou em relação a 2020.

E isso não é nada bom para a imagem do país e para os negócios.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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