Em Foco

Caminhamos para uma recessão?

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

As inúmeras sequelas da pandemia – as economias encolheram, empresas quebraram, a fome e o desemprego aumentaram; além da perda de milhões de vidas, dos problemas mentais provenientes do longo isolamento e das sequelas que o vírus deixou nas pessoas, muitas ainda sem explicação médica, só para citar algumas – deixaram o mundo sem rumo. Depois de mais de dois anos da devastadora disseminação da COVID-19, quando parecia que as coisas começariam a melhorar, estourou uma guerra com a Rússia invadindo a Ucrânia.

Os preços represados durante a pandemia, com a demanda voltando a se aquecer, iniciaram uma trajetória de alta que está sendo alimentada pela guerra, pelos lockdowns na China para conter uma nova onda da variante Ômicron, trazendo problemas na cadeia global de suprimentos.

A pergunta que já começa a ganhar força entre economistas e analistas é se o mundo caminha para uma recessão. Ou se haverá uma forte desaceleração econômica, o que já parece favas contadas, com alguns países e regiões mais vulneráveis podendo entrar em um processo recessivo.

Nos Estados Unidos, o indicador da S&P Global que mede a atividade nos setores de serviços e indústria desacelerou em maio, ficando em 53,8, o menor em quatro meses. Na zona do euro, esse indicador baixou de 55,8 em abril para 54,9 em maio. Por ora, com resultados acima de 50, não caracteriza uma recessão. Mas os dados que têm sido divulgados são preocupantes.

O Instituto de Finanças Internacionais (IIF, sigla em inglês) reduziu pela metade as previsões de crescimento mundial este ano, de 4,6% para 2,6%. Também reviu para baixo o crescimento chinês, dos 5,1% previstos anteriormente para 3,5% este ano. Na quarta-feira, 25, o primeiro-ministro chinês Li Keqiang reconheceu que a economia chinesa terá dificuldades para apresentar taxas positivas de crescimento neste segundo trimestre do ano.

Um fator que tem aumentado a preocupação com uma possível recessão é a questão energética. Hoje estamos vivendo uma crise global de energia, diferente da crise de 1970, onde o protagonista central era só o petróleo. Agora, além do petróleo, temos gás natural e carvão. Com a guerra na Ucrânia, a segurança energética ficou seriamente comprometida, pois a Rússia era a maior exportadora mundial de petróleo e de gás, além de ter importante participação no mercado de carvão. Com o fornecimento interrompido pelo conflito, os preços dos combustíveis devem continuar elevados no mundo por mais algum tempo, alimentando a inflação mundial, que tenta ser contida com a alta dos juros, levando a uma queda na atividade econômica.

Relembre:  Em Foco - Uma faca de dois gumes

Nos países emergentes, nos mais pobres, a situação é ainda pior, com o aumento da pobreza e da fome. O corte no fornecimento de alimentos produzidos na Rússia e na Ucrânia – são importantes produtores de trigo, milho, óleo de girassol, centeio, cevada, aveia, beterraba –, já afeta países africanos e de outras partes do planeta. Com o fechamento da saída para o Mar Negro, produtos agrícolas ucranianos, que não foram destruídos pela guerra, estão estocados, podendo se deteriorar. Fertilizantes e adubos estão com os preços nas alturas, pressionando ainda mais para cima os alimentos. A Rússia é a maior exportadora mundial de NPK – o trio de fertilizantes fosfatados, nitrogenados e de potássio. O Brasil é o maior importador mundial de fertilizantes, com forte dependência do produto russo e da Belarus.

Em artigo de Joe Wallace, da Dow Jones Newswires, de Davos, reproduzido pelo Valor Econômico do último dia 25, Mark Malloch-Brown, presidente da Open Society Foundations, disse que “os alimentos são uma arma na guerra, e estamos vendo isso agora”.

A segurança alimentar já vinha piorando no mundo. No Brasil, ela bateu recorde no final de 2021, superando, pela primeira vez a média mundial, segundo pesquisa global Gallup realizada em 160 países.

“Segundo dados do Gallup analisados no Brasil pelo Centro de Políticas Sociais do FGV Social, a taxa de insegurança alimentar saltou de 17% em 2014 para 36% no final de 2021. Pela primeira vez ela superou a média global (35%), aferida a partir de 125 mil questionários aplicados no mundo”, segundo descreve Fernando Canzian, repórter especial da Folha de S. Paulo em matéria publicada ontem, 26.

O quadro deve ter se agravado, pois a pesquisa feita no final do ano passado não captou a disparada de preços com a guerra na Ucrânia, que levou os preços das commodities agrícolas, como trigo, milho e soja, às alturas, além dos combustíveis e commodities metálicas.

Como já havia escrito nesse espaço em 25 de janeiro último, estudo da Rede Penssan mostrou que a insegurança alimentar no Brasil atingiu 55,2% da população em 2020, aumentando em relação aos anos anteriores. O que deve ter ficado pior em 2021 com a pandemia.

Veja: Alguns desafios

Mas voltando à questão se caminhamos ou não para uma recessão no mundo, e qual seria sua extensão, consultei alguns economistas aqui do FGV IBRE. Vejam as colocações de cada um sobre o assunto, a quem agradeço por tonar esse texto mais rico:

Silvia Matos – Pesquisadora e coordenadora do Boletim Macro FGV IBRE

Sem dúvida esta é a grande pergunta atual. Com certeza esperamos uma forte desaceleração do crescimento mundial, com inflação ainda muito persistente. No entanto, recessão mundial, mesmo sendo um cenário provável, não é o meu cenário de maior probabilidade. Falar sobre recessão mundial é algo bem complexo. Para países, em geral, a recessão ocorre quando há uma contração significativa na economia, espalhada em todos os setores, com duração de alguns meses, pelo menos. Utilizando esta definição, acho que é um cenário provável, mas não inevitável.

O grande motivo desta afirmação é se um cenário de estagnação mundial, com alguma normalização das cadeias produtivas, ou seja, um menor desequilíbrio entre oferta e demanda, possibilitará um recuo mais generalizado de preços de commodities e de insumos e bens industriais ao redor do mundo. Caso isso seja possível, o custo do combate à inflação mundial será menor em termos de perda de crescimento, ou seja, não necessitando passarmos por uma recessão mundial mais generalizada.  É possível, porém, que se aumentar o risco de uma recessão mundial, os bancos centrais sejam mais cautelosos em suas políticas contracionistas No entanto, avalio que muitos países podem passar por uma forte desaceleração, com resultados bem negativos por alguns trimestres.

Após um período de recuperação generalizada no mundo, a conta chegou. Mesmo podendo escapar de uma recessão mundial, teremos um longo período de baixo crescimento. 

José Júlio Senna – Chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV IBRE

A inflação é o grande problema econômico dos novos tempos. No mundo desenvolvido, as autoridades governamentais atuaram com muita firmeza no combate à “parada súbita” da economia mundial no segundo trimestre de 2020. Agiram tanto no lado fiscal, quanto no monetário. O lado fiscal já foi largamente revertido. Mas o monetário não. Vê-se isso tanto em termos de liquidez (ainda muito abundante), quanto no campo dos juros reais (bem negativos). Em poucas palavras, a frouxidão monetária não foi revertida e está na origem da alta da inflação.

Em cima disto, tivemos o surgimento de gargalos de oferta, provocados pela pandemia, e a forte demanda por bens físicos, especialmente nos EUA, também trazida pela pandemia. Esses dois componentes batem na inflação por meio de choques, de oferta e de demanda.

Nesse quadro, temos então dois componentes da inflação: alta de preços voláteis (preços dos carros usados têm sido lembrados como um ótimo exemplo) e uma inflação nuclear. O primeiro acabará se dissipando, cedo ou tarde. O problema é a inflação nuclear, muito associada ao aperto no mercado de trabalho, que por sua vez tem a ver com o aumento da demanda por mão de obra. Quando a economia se aquece, por meio de expansão monetária, esse é um resultado esperado.

Não parece haver possibilidade de se esfriar o mercado de trabalho, que, nos EUA, já provoca altas salariais entre 6% e 6,5% ao ano, sem um forte aperto monetário. E esse aperto é o que muito possivelmente levará a economia americana a uma recessão em 2023. Outros Bancos Centrais acabarão tendo de apertar suas políticas monetárias também, contribuindo assim para que o problema recessivo se alastre. Dentre os emergentes, são muitos os que já apertaram suas respectivas políticas (afinal, a inflação é global), contribuindo na mesma direção.

Por último, as incertezas trazidas pela guerra, juntamente com os choques de preços de energia e grãos, também concorrem para agravar o quadro de desaceleração econômica mundial, especialmente na Europa.   

Fernando de Holanda Barbosa Filho – Pesquisador do FGV IBRE

O mundo caminha para uma recessão. Só não se sabe a extensão. Os diversos choques de oferta que o mundo sofreu nos últimos anos, combinados com uma política monetária frouxa, possibilitaram uma aceleração da inflação que se encontra no nível mais elevado em décadas. Com isso, a política monetária contracionista que será adotada em diversos países vai desacelerar a economia mundial.

Adicionalmente, a guerra na Ucrânia criou um choque de energia e de alimentos, alimentando o processo. Por último, a política de COVID-zero da China também aumenta o risco de falta de insumos das cadeias globais de valor, mais uma vez sendo um choque negativo. No Brasil, a inflação elevada deve começar a atingir o setor de serviços nas renegociações salariais. Isso deve pressionar a inflação, exigindo que o Banco Central mantenha uma política contracionista.

Desta forma, apesar da recuperação gradual do mercado de trabalho, a conjuntura de curto prazo não é positiva. Obviamente, existe ainda uma eleição muito polarizada pela frente para complicar ainda mais o ambiente doméstico brasileiro num cenário global negativo.

Samuel Pessoa – Pesquisador-associado do FGV IBRE

O crescimento mundial será menor, mas não por um problema clássico de redução da demanda. Temos tido seguidos choques que têm reduzido a capacidade de oferta.

A queda na atividade será um fenômeno de queda de oferta e não de queda de demanda. Ou seja: mais estagflação à frente. O aumento dos juros, ao menos o que está precificado na curva americana, não é suficiente para gerar uma recessão nos Estados Unidos.

Bráulio Borges – Pesquisador-associado do FGV IBRE

Diversos indicadores coincidentes e antecedentes vêm apontando para um quadro de recessão global. É o caso, por exemplo, do Barômetro KOF FGV IBRE. De fato, a forte elevação dos preços de energia e de alguns alimentos desde o final do ano passado, a política Covid Zero chinesa e a expressiva destruição de riqueza financeira neste ano de 2022 (por conta da reprecificação das perspectivas da política monetária norte-americana) apontam para um baque no crescimento mundial nos próximos meses. Contudo, não parecemos estar diante de uma recessão tão profunda e duradoura como se observou nos episódios de 2008/09 e 2020, e sim de uma mais parecida com aquela do começo dos anos 1990 (associada à guerra do Golfo), que durou apenas dois trimestres. Conquanto essa recessão de fato seja moderada e breve, ela pode até mesmo contribuir para corrigir alguns dos desequilíbrios associados à recessão e recuperação da crise da pandemia, notadamente as pressões inflacionárias.

Armando Castelar – Pesquisador-associado do FGV IBRE

                                                   

Que a economia vai desacelerar é consenso. No seu Panorama Econômico Global, do mês passado, o FMI cortou a projeção de crescimento mundial em 2022 e 2023 para 3,6%, respectivamente 0,8 e 0,2 ponto percentual a mesmo do que previa antes. Essa taxa compara com alta 6,1% em 2021 e uma média de 3,7% ao ano em 2010-19.

Mais preocupante, porém, é que boa parte da expansão este ano vem do bom desempenho na segunda metade de 2021, o chamado carregamento estatístico, e não da expansão da atividade este ano. Assim, o Fundo projeta que no último trimestre deste ano o PIB mundial esteja apenas 2,5% acima do observado ao final de 2021.

Provavelmente, porém, mesmo essa taxa mais baixa ainda superestima o crescimento mundial este ano, em que pese todo o ganho decorrente da normalização econômica, com o (quase) fim da pandemia na maioria dos países. Isso por vários fatores que vêm impactando as principais economias do mundo.

A Europa sofre com a forte escalada dos preços de energia, não só o petróleo, mas também o gás natural, insumo essencial para a geração elétrica e boa parte da indústria. Para as famílias, essa alta de preços reduz a renda disponível para o consumo de outros bens e serviços. Para as empresas, compromete sua competitividade. Nos EUA, o Fed, o BC americano, já sinalizou que subirá bastante os juros neste ano e no próximo. Isso já impactou as taxas de mercado – o retorno dos títulos públicos de dois anos saltou de 0,2% para 2,6% a. a. nos últimos nove meses – elevando o custo de capital das empresas. A alta dos combustíveis reduz a renda disponível, enquanto a queda das bolsas diminui a riqueza, nos dois casos prejudicando o consumo de bens e serviços. Muitos analistas preveem que a economia americana entre em recessão na segunda metade de 2023.

A China, que já responde por quase um quinto do PIB mundial, está às voltas com a pandemia. A reação do governo chinês ao surgimento de novos casos é trancar as pessoas em casa, o que significa interromper a produção, o consumo, o que tem pesado negativamente sobre a atividade econômica.

Muitos emergentes, em especial os que não produzem commodities, estão sofrendo com a piora do ambiente externo. Pesam aqui a alta do preço do petróleo e dos alimentos, o fortalecimento do dólar, o crescimento mais lento da China e a perspectiva de juros mais altos nos EUA e na Europa. Não se pode descartar que alguns países com maior endividamento externo enfrentem crises no próximo ano e meio.

Muito pessimismo? É possível. Mas que a situação está ficando mais complicada, está.

********

Inscreva-se no II Seminário de Análise Conjuntural, onde esse tema será objeto de debate entre os pesquisadores do FGV IBRE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir