Em Foco

A arquitetura da destruição

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Não é novidade para ninguém que a invasão da Rússia à Ucrânia puxou ainda mais os preços dos combustíveis e das commodities. Os consumidores, que já sentiam que o dinheiro estava ficando mais curto, viram a situação piorar desde que a guerra eclodiu. Na verdade, a renda dos trabalhadores já vinha sendo achatada. Como lembrou Silvia Matos, pesquisadora do FGV IBRE em sua coluna da Folha de S. Paulo de quarta-feira, 23, “no quarto trimestre de 2021, o rendimento real efetivo dos trabalhadores informais ainda estava 6,6% abaixo do registrado no último trimestre de 2019”. O dado é o último disponível e os informais têm aumentado a sua participação na força de trabalho, com empregos de pior qualidade e menor remuneração.

Com o prolongamento do conflito, que já completa um mês, embora tenha havido um arrefecimento no preço do barril do petróleo, mas que continua bem acima dos 100 dólares, a expectativa é de que as cotações continuem bastante pressionadas, em uma nova realidade de alta volatilidade para os preços do petróleo no mercado internacional. Com isso, sobem os preços da gasolina, do diesel, dos alimentos, das commodities – a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores de trigo, milho, fertilizantes, além de vários metais.

Estudo da área de Análise Econômica do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) sinaliza que a crise atual é a pior, desde a Segunda Guerra Mundial, em termos de volatilidade de preços – que alcançou o patamar de 30%, seis vezes acima do que foi registrado na década de 1970. Além da guerra, os preços do petróleo e demais energéticos, como o gás, já vinham sendo pressionados pelo aumento da demanda, represada durante a pandemia da Covid-19. O artigo completo sobre esse estudo será publicado na edição da revista Conjuntura Econômica de abril.

Volatilidade por década do WTI deflacionado (%)


Fonte: Elaboração IBP a partir de dados de Federal Reserve Bank of St. Louis e U.S. Bureau of Labor Statistics.

O grande dilema é como reduzir essa enorme dependência do petróleo e gás russos. O quadro mais dramático é o da Europa, que depende em 49% do petróleo e em 74% do gás que vem da Rússia. Em menor escala, a Ásia e a Oceania dependem de 38% e 13%, respectivamente, enquanto o resto do mundo fica com uma parcela de 13% dos dois produtos.

Embora não seja algo trivial, fico aqui matutando como a Europa se enroscou em tamanha dependência. Desde o esfacelamento do Império soviético, como escrevi no Em Foco Os demônios que nos assombram, Vladimir Putin vinha traçando uma trajetória da volta da chamada “Nação Mãe”, com a incorporação de ex-repúblicas soviéticas. Destruiu e anexou a Criméia, invadiu a Chechênia, a Geórgia, reconheceu enclaves separatistas na Ucrânia, auxiliou o ditador sírio, Bashar Hafez al-Assad, a arrasar cidades como Alepo, e a matar e expulsar milhares de sírios de seus país.

Mas mudar essa dependência do petróleo e gás não se faz de uma hora para outra. É um processo que pode demorar anos e envolve muito dinheiro na compra de equipamentos, busca de novos fornecedores, qualidade do óleo, fechamento de acordos comerciais. O que deveria ter sido feito há bastante tempo.

No caso do gás, outra forma de abastecimento, além dos gasodutos, são os navios metaneiros, embarcações-tanque que realizam o transporte de gás natural liquefeito. Mas o transporte é caro e não há navios suficiente no mundo para isso, nem fornecedores aptos a suprir a demanda. O primeiro desses navios foi construído em 1931, nos Estados Unidos. Não há dados muito precisos e recentes, mas estima-se que haja pouco mais de 500 desses navios em operação no mundo.

Outro ponto é dos oligarcas russos. A conivência de governos ocidentais permitiu que a Europa e os Estados Unidos fossem irrigados com dinheiro proveniente de aliados do presidente Putin. Os interesses econômicos falaram mais alto. Agora, com a guerra em um país estratégico no Leste Europeu, com 44 milhões de habitantes, sanções são impostas a essa oligarquia.

É uma sinuca de bico. De um lado, o Ocidente impondo sanções cada vez mais severas ao governo Putin. De outro, a progressiva destruição das cidades ucranianas e as frequentes ameaças de cortes de fornecimento de petróleo e gás – respondem por pouco mais de 30% do PIB russo – e do uso de armas nucleares, além dos avisos de que uma intervenção da Otan jogaria o mundo em uma nova guerra.

Como já escrevi neste espaço, a guerra deixará cicatrizes profundas. As relações da Rússia com o Ocidente irão se acirrar, uma nova concepção do comércio global surgirá, com impactos nas cadeias de suprimento e financeiro. As relações entre russos e chineses tende a se solidificar, com a China ampliando seu grau de influência na Rússia, na Ásia e no mundo. A Rússia é o segundo maior produtor de gás do mundo. E a China é o maior comprador mundial de gás, como mostra o gráfico abaixo publicado no site do IBP que tomo a liberdade de reproduzir.

Os maiores compradores de gás


Fonte: Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP0. Dados de 2020.

Como esse rearranjo dessa nova geopolítica vai impactar o mundo ainda é uma grande incógnita. Mas que o mundo não será mais o mesmo, não tenho dúvidas.

O conflito parece ter chegado a um impasse. O exército russo não consegue avançar, em função de problemas logísticos e pela resistência ucraniana. O que tem intensificado os ataques por mísseis, colocando no chão prédios residenciais, comerciais, hospitais, escolas, sistemas de infraestrutura. Até agora, cerca de 3,5 milhões de pessoas já deixaram a Ucrânia fugindo da guerra.

O que me lembra, ainda que guardadas as enormes diferenças entre os dois regimes, o nazista e o comunista, o documentário Arquitetura da Destruição, do sueco Peter Cohen, de 1989, onde o foco central é mostrar um lado pouco conhecido dos ideais do regime nazista: a concepção artística do regime acerca da política e da vida. Em um dos trechos do documentário, Cohen menciona que a guerra para Hitler não era apenas vencer o inimigo. Mas exterminar e destruir as nações conquistadas, como uma forma de higienização para tornar o mundo mais belo, nem que para isso tivesse que destrui-lo. Paris, Roma e Atenas ficaram fora dessa megalomania, felizmente, pois Hitler, um artista frustrado, impediu que esses países fossem bombardeados.

Evidentemente, não é a concepção de Putin que bate na tecla de manter a segurança da Rússia e de combater os grupos neonazistas da ex-república soviética. Mas o que está acontecendo na Ucrânia lembra muito esse trágico período de higienização, onde os judeus, ciganos e deficientes físicos foram os alvos principais.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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