Em Foco

A desinformação e a segunda dose  

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Na última terça feira (13), o Ministério da Saúde anunciou que 1,5 milhão de pessoas não tinham ido tomar a segunda dose da vacina dentro dos prazos estipulados, colocando em risco o processo de imunização. O que leva tantos brasileiros, ante uma pandemia que já matou mais de 360 mil pessoas, a tomar tal decisão?

Os fatores podem ser muitos: inexistência de uma campanha nacional esclarecendo sobre a importância da imunização, como sempre foi feito em vacinações anteriores, como poliomielite, sarampo, da gripe, com o Zé Gotinha. Falta de vacinas nos postos: há inúmeros casos de pessoas que ficaram horas na fila, mas não havia imunizantes suficientes. Dificuldade dos familiares levaram pessoas mais idosas, uma vez mais, ao posto de saúde, especialmente nas faixas de renda mais baixas. E um certo relaxamento, desleixo, por falta de esclarecimentos sobre a importância da imunização. Devem haver outras razões que poderiam ser melhor mapeadas pelas autoridades de saúde, já que pouco se sabe sobre os efeitos da aplicação de apenas uma dose nas pessoas.

É um número muito alto, quando mais de 84% da população, segundo pesquisa recente do Instituto Datafolha, declararam desejo de tomar a vacina. Isso me lembra a série Pandemia, do Netiflix, onde cientistas já alertavam, em 2019, quando a série foi gravada, pouco antes do mundo começar a conhecer o surto de contágios e mortes em Wuhan, sétima maior cidade da China, que o planeta corria um sério risco de ser assolado por um vírus.

A desinformação, amplificada pela ausência de uma campanha alertando sobre a necessidade da vacinação, permeia uma boa parte do documentário, como ocorre por aqui. Na quarta-feira (14), aguardando na fila para tomar a segunda dose da Coronavac, uma senhora procurava “esclarecer” as pessoas que estavam ao seu redor. Dizia que muitas mortes anunciadas como sendo da COVID-19, na verdade, eram de outras doenças. E que a imprensa estava inflando os números. Possivelmente, já que o vírus ataca, indiscriminadamente, diversos órgãos do organismo, levando à morte.

O documentário escancara essa falta de informação ao mostrar que em países africanos, espalha-se o boato que a vacina contra o ebola é, na verdade, uma trama dos Estados Unidos para eliminar os africanos. (Aqui, tivemos vários faknews sobre a Coronavac, que iam desde memes de se virar um jacaré logo após ser vacinado, até a inoculação de um chip no corpo, mudanças no DNA, entre outros). Nos Estados Unidos, grupos anti-vacina dificultam a erradicação de doenças, como a gripe, sarampo, entre outras.

O surgimento da COVID-19 é um trágico acontecimento que cientistas já vinham alertando, como profetizou o documentário Pandemia. A transmissão de vírus de animais para os humanos, especialmente na Ásia, onde feiras e mercados enormes vendem os mais variados tipos de animais, é um terreno fértil para isso, não estando descartada a possibilidade do aparecimento de novos vírus, mais transmissíveis e fatais.

Na busca de uma vacina universal contra a gripe e suas variantes, como é o caso do coronavirus, a Fundação Bill e Melinda Gates, passou a apostar em um projeto da empresa Distributed Bio, de São Francisco, nos Estados Unidos, dos jovens pesquisadores Jacob Glanvill e Sarah Ives. Os testes preliminares em porcos inoculados com o vírus da gripe e suas variantes na Guatemala, onde vivem os pais de Glanvill, tiveram bons resultados iniciais. A expectativa era de que uma vacina, batizada de Centivax, poderia surgir em 2025, como mostrou o final do documentário. O que seria um avanço gigantesco no combate ao infindável número de vírus que proliferam pelo planeta.

O aumento de casos e mortes no Brasil tem nos isolado ainda mais do mundo. Na quarta-feira, Os Médicos Sem Fronteira, uma Organização Não Governamental (ONG), que atende pessoas vulneráveis mundo a fora, soltou um comunicado classificando a situação brasileira como uma “catástrofe humanitária”, fazendo um apelo “as autoridades do país que reconheçam a gravidade da crise e implementem um sistema coordenado para impedir mais mortes evitáveis”. Também a Organização Mundial da Saúde (OMS), mencionou o Brasil como um caso de “perda de controle” na luta contra a pandemia, ante um cenário de instabilidade com a piora nos números em muitos países. O Parlamento Europeu também foi na mesma linha. E a revista Science, uma das mais conceituadas, culpou o governo brasileiro pela má condução no combate a pandemia.

Com a explosão de casos e mortes, cada vez mais países estão barrando a entrada de brasileiros: o último foi a França. Com nenhuma ou restrições brandas, só podemos ir para o México, Albânia, Afeganistão, Costa Rica, República Centro-Americana, Nauru e Tonga. Por enquanto.

Um ano de recordes
mortes Covid-19 no Brasil


Fonte: Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde.

Há outras sequelas e consequências, até então desconhecidas, que o vírus carrega e que começam a ser relatadas com mais frequência, através do acompanhamento de pessoas que ficaram internadas. Uma delas é que cerca de 80% dos pacientes entubados acabam morrendo, ou no hospital, ou depois de receberem alta devido a complicações. Ou ficam com graves sequelas. Também o tempo de internação nas UTIS, já lotadas, tem se prolongado, pois em muitas cidades as pessoas mais jovens já são a maioria dos internados.

E o custo disso é altíssimo. Para o Sistema Único de Saúde (SUS), o impacto é enorme – o que deveria ser medido e divulgado –, pressionando as contas públicas, já tão fragilizadas. Não querendo chover no molhado, como diz um velho ditado, muito mais barato e eficiente, sem perda de tantas vidas, seria vacinar a população. O que o ministro Paulo Guedes já veio a público defender, tardiamente, quando essa segunda onda já se espalhava pelo país.

Mas não há vacinas suficientes, pelo menos nesse primeiro semestre. A bandeira do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, de vacinar 1 milhão de pessoas por dia, com possibilidade de que até junho metade da população esteja vacina, tem muitos entraves para se concretizar. Há falta de imunizantes para a produção. O Butantan vai reduzir sua oferta, já que parte de sua linha de produção estará empenhada na fabricação da vacina da gripe. A Fiocruz, tem tido sucessivos atrasos nas entregas prometidas. O que poderá piorar, pois na Índia o número de casos tem crescido significativamente: o princípio ativo para produção da AstraZeneca, da Fiocruz, vem de lá. Não está descartada a possibilidade de que o governo indiano retenha ou atrase remessas prometidas, como forma de aumentar a produção interna e acelerar a imunização no país.

Vacinas que estão no cronograma do Ministério da Saúde – desde 19 de março que não há uma atualização –, como a russa Sputinik, e a indiana Covaxin, não tem, por enquanto, aval da Anvisa. No caso da Covaxin, por exemplo, foi proibida a importação que o governo pretendia fazer. Pelo cronograma previsto pelo Ministério, será no segundo semestre a maior concentração de chegada de vacinas ao Brasil. No total, desde que o cronograma seja cumprido, o que não tem acontecido, até o final deste ano estima-se que 482,75 milhões de doses chegarão, o que seria suficiente para imunizar toda a população.

Cronograma de entrega de vacinas
(em milhões de doses)


Não estão incluídas: 10 milhões de doses da russa Sputinik V e 20 milhões de doses da Covaxin, ainda sem aval da Anvisa. Estão incluídas as vacinas do Butatan (Coronavac): produzidas internamente, mais as importadas; da Fiocruz (AstraZeneca): importadas e produzidas internamente, Pfizer e Janssen. É possível que algumas remessas possam ser antecipadas, como é o caso da Pfizer. Fontes: Ministério da Saude, Butantan, Fiocruz.

Outra consequência nefasta do agravamento da pandemia e do alto desemprego – em janeiro, último dado divulgado pelo IBGE, a taxa de desocupados foi de 14,1% –, é o progressivo endividamento das pessoas, especialmente das camadas mais pobres da população, as mais duramente atingidas pela pandemia. Uma pesquisa feita com uma amostra de consumidores pelo FGV IBRE, aponta que o percentual das famílias de renda mais baixa que informaram estar endividadas é o maior desde junho de 2016 (leia mais aqui). Na periferia do Rio, é comum ver longas filas na porta de financeiras e empresas que concedem créditos, o que tende a puxar ainda mais para cima o indicador de endividamento. Seguramente, sem emprego, com a economia não decolando enquanto a crise sanitária não for resolvida, grande parcela dessas pessoas que buscam crédito, não terá condições de honrar seus compromissos. Segundo o Indicador Serasa Experian, em março, em relação a igual mês de 2020, a busca por credito foi 20,1% maior, com forte concentração nas rendas mais baixas – 26,9% com renda de até R$ 500,00, e 21,4% de R$ 500,00 a 1.000,00.

Márcio Garcia, professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, ao participar do webinar “A Política monetária e seus impactos na economia”, realizado, ontem (15), pelo FGV IBRE e jornal O Estado de S. Paulo, defendeu, enfaticamente, que somente com o enfrentamento da pandemia, de forma séria e consistente, a economia poderá se recuperar. O que já havia sido defendido, no final de dezembro, por Paulo Hartung, ex-governador do Espirito Santo, em entrevista a esse blog.

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Enquanto aguardava na fila para ser vacinado, em Niterói, no Rio, muita gente aguardava sua vez para receber a primeira dose. Ao receberem a informação que o Ministério da Saúde não havia enviado o imunizante, e que ninguém seria vacinado pela primeira vez, um misto de decepção e desalento ficou estampado nos olhos dos que haviam esperado por esse momento. Cabisbaixos, começaram a sair da fila, retornando às suas casas.

Pessoas dentro de seus carros, paravam e perguntavam se o posto estava vacinando. Com certeza, estavam numa peregrinação pelos vários postos de saúde da cidade, com a esperança de encontrar a vacina em algum deles. Uma busca infrutífera. Uma enfermeira, que trabalha em um hospital público de Itaboraí, no Rio, contava que só conseguiu tomar a primeira dose. Teve que se deslocar para Niterói na tentativa de ser vacinada, novamente.

Ao receber a segunda dose da Coronavac, me invadiu um certo alívio. Mas uma tristeza ao lembrar das pessoas que tiveram que voltar às suas casas, sem vacina, com a esperança de que uma nova remessa chegue. Quem sabe nessa sexta (16), como disse Janaina, a enfermeira que me atendeu.

 

No Em Foco da semana passada – “Odeio esse vírus”-, por um lapso, não agradeci a Silvia Matos pela elaboração do gráfico “Mortes por milhão de habitantes – em relação a população idosa. 

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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