Em Foco

O mundo virando do avesso

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Ao começar a escrever esse texto, tive que mudar o foco. A Rússia decidiu invadir a Ucrânia, elevando a tensão no Leste Europeu. É mais um desastroso acontecimento no mundo que começou a ser pontilhado de movimentos radicais em vários países. As pessoas perderam qualquer pudor, extravasando seus sentimentos de forma assustadora.

Esta semana, peguei um táxi. O motorista estava sem máscara. Pedi para colocar. Voltando para casa, distraído, terminando de reler Almas Mortas, de Nikolai Gogól, onde, de forma magistral, o escritor do conto O Nariz relata a realidade da sociedade russa, a mais oprimida, meu coração veio na boca: sem mais nem menos, o taxista começou a proferir palavrões a um motorista de outro carro que estaria atrapalhando o trânsito. Além dos impropérios, jogou seu carro contra o outro, buzinando feito um alucinado. Estava transtornado, olhos cor de sangue, quase espumando pela boca. Felizmente, como estava perto de casa, paguei a corrida e desci. Não sei se essa esdrúxula situação teve outros desdobramentos.

Há duas semanas, tomamos coragem e, com máscara N95 e frasco de álcool gel nas mãos, fomos ver o primoroso Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar. Cinema meio vazio, sem pipoca para não tirar as máscaras, ao chegarmos às poltronas, um casal, logo atrás, sem máscaras. Isso apesar de várias recomendações de que o uso de máscaras era obrigatório. Colocaram, meio a contragosto, depois que pedimos. Mas fomos nos sentar em outro lugar, pois havia poltronas vazias para escolher.

Uma das pessoas que trabalha aqui em casa tem um filho com problemas mentais. Ao nascer, não teve oxigenação suficiente. Morava com o pai e, há uns três meses, escapuliu de casa. Só foi encontrado pela sua irmã, num hospital de São Gonçalo, um dia depois, após uma peregrinação. Havia sido espancado: teve a perna, costelas quebradas. Perdeu a fala e, possivelmente, ficará numa cadeira de rodas pelo resto da vida.

A sensação é de que uma histeria de violência toma conta das pessoas. Todo dia vemos nos jornais, sites, telejornais, notícias que nos chocam: pessoas espancadas até a morte. Mulheres agredidas, mortas, amarradas em carros e sendo arrastadas. Exaltações ao nazismo, com defesa de criação de partido e saudações nazistas em público. Ataques a judeus. Negações do holocausto. Nesse caso, por sinal, sugiro verem o documentário Final Account (disponível no Now, GooglePlay e AppleTV, entre outros), um retrato impressionante da última geração viva de pessoas que participaram do Terceiro Reich de Adolf Hitler, onde sobreviventes que fizerem parte das organizações nazistas dão depoimentos sobre o que ocorreu naquela época. É clara a dificuldade em assumirem a culpa pela morte de milhões de judeus, com algumas exceções. O que mais me impressionou foi o depoimento de um condecorado militar alemão que, além de não assumir nenhuma responsabilidade, ao seu perguntado se responsabilizava Hitler, não só pela morte dos judeus, mas pelos milhões de mortos na sua cruzada para dominar a Europa, responde: “Não acho que Hitler tenha responsabilidade. Não o julgo por isso”.

Michele Prado, que navega nas redes sociais há alguns anos em grupos de direita, em seu livro Tempestade Ideológica – Bolsonarismo: a Alt-Right e o Populismo I-Liberal no Brasil, traça um perfil do surgimento e crescimento dos grupos de extrema direita radical no Brasil que começaram a ganhar força a partir de 2014/2015. Antipetista e estudiosa dos movimentos de direita pelo mundo, Michele, que acompanhou e participou desses grupos por algum tempo, mostra como esses movimentos se expandiram pelo mundo e acabaram desaguando no Brasil, com a formação de núcleos que defendem vários interesses, mas sempre ancorados no conservadorismo, na defesa da família e de Deus.

O radicalismo que começou a tomar conta desses grupos de direita, transformando-os em extrema radical, explica a violência que cresce, a defesa de ações mais contundentes contra a democracia, misoginia, ataques ao povo judeu, exaltação ao nazismo, defesa a favor do armamento da população, racismo, entre outras coisas escabrosas. Há uns cinco anos, era inconcebível alguém, em público, defender o nazismo, a misoginia etc.

A invasão da Rússia à Ucrânia é mais um capítulo desse mundo que está virando do avesso. Muitos interesses geopolíticos estão envolvidos na ação militar russa, já que a Ucrânia tem terras férteis, petróleo, gás, recursos naturais abundantes. Também é uma reação à pretensa intenção ucraniana de entrar na OTAN, o que colocaria uma força militar considerável do Ocidente na divisa com a Rússia. E Putin, que se considera um Czar, sem dúvida, sonha em ampliar a extensão territorial de seu país, como nos velhos tempos da antiga União Soviética. O sonho, quem sabe, de ser uma versão moderna de Pedro, o Grande, Czar Romanoff, que governou a Rússia entre 1.682 e 1.725 e que expandiu as fronteiras do país, criou uma poderosa frota naval, venceu os turcos conquistando acesso ao mar, introduziu costumes europeus ao povo russo, modernizando a economia, a educação e as artes.

Os relatos são de uma invasão ampla por terra, mar e ar, muito além das fronteiras das duas províncias separatistas, Donetsky e Lugansk, reconhecidas por Putin como territórios russos. Em 47 cidades da Rússia, até o começo da tarde de quinta-feira (24), mais de 1,5 mil pessoas tinham sido presas por protestarem contra a invasão. Chernobyl foi tomada em poucas horas. Mas, enquanto escrevia esse texto, as informações eram ainda muito desencontradas.

Os mercados reagiram à ação militar. A Bolsa russa chegou a cair 30%. As bolsas no mundo desabaram e o dólar embicou para cima, novamente. O petróleo passou da casa dos US$ 100 o barril.

Não haverá envolvimento dos Estados Unidos no conflito, a não ser que algum país da OTAN seja invadido, como mencionou o presidente Joe Biden. Há muitos interesses em jogo, embora uma tomada da Ucrânia pela Rússia a coloca às portas da Polônia. Historicamente, quando Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande, governaram, a Polônia sempre foi uma pedra no sapato dos czares.

Sem nenhuma ação concreta, por enquanto, de ação direta no conflito, o que vem sendo feito são sanções comerciais. Ocorre que Putin vem se preparando para essa guerra há algum tempo. Acumulou reservas, criando um colchão de proteção. Além disso, os impactos econômicos não serão apenas para a Rússia, mas para o mundo como um todo, com a alta do petróleo, do gás, de fertilizantes, do dólar, quebra de cadeias de suprimento. O mundo está saindo de quase dois anos de uma pandemia, com duros impactos sobre a economia. Agora, uma nova pancada, da qual ainda não sabemos a extensão e a potência. Para o Brasil, que depende, e muito, dos fertilizantes que vêm da Rússia, o quadro pode impactar ainda mais a alta dos alimentos. No ano passado, o Brasil importou US$ 3,097 bilhões de fertilizantes, exportando US$ 897 milhões de produtos variados.

Outra questão delicada é a posição dos Estados Unidos. Com uma popularidade baixa, da ordem de 52%, o presidente Biden pode ter que enviar tropas de reforço a países que fazem parte da OTAN e que fazem fronteira ou estão perto da área de conflito. A retirada das tropas norte-americanas no Afeganistão foi caótica, e o envio de novas tropas para outros países pode enfraquecer ainda mais a posição de Biden. Em seu discurso, ontem, o presidente dos Estados Unidos anunciou o envio de tropas aos aliados da OTAN e uma série de sanções econômicas contra o governo e empresários russos que “enriqueceram com negócios patrocinados pelo governo da Rússia”.

Enquanto isso, sendo bombardeado pelas informações que jorram dos canais de TV, o povo ucraniano olha os céus e aguarda o toque das sirenes alertando para ataques iminentes. Muitos tentam sair do país. A Ucrânia tem 40 milhões de habitantes. O recrudescimento do conflito pode gerar outro grande problema: um ciclo migratório de refugiados para países vizinhos. O que já é um grande problema na Europa.

Será que o mundo tem solução?

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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