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Uma guerra de narrativas

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Nas últimas semanas se intensificaram as ações diplomáticas para tentar frear o que se desenha como um possível conflito entre a Rússia e o Ocidente em função de ameaças de uma invasão à Ucrânia. O presidente Joe Biden, ajudado pelo premiê Boris Johnson, do Reino Unido – às voltas com denúncias de fazer festas no meio de uma pandemia –, elevou o tom belicista. Vladmir Putin, por seu lado, em entrevista, respondendo a uma pergunta de uma jornalista, atacou duramente a OTAN, a aliança militar do Ocidente, e os Estados Unidos, declarando que a questão não é de negociação, mas de segurança de seu país já que, segundo ele, “estão chegando às portas da Rússia”.

A Rússia enviou proposta, rejeita pelos Estados Unidos, com dois pontos delicados: quer que haja um enxugamento no tamanho da OTAN, retirando os países que faziam parte da antiga União Soviética; e que a Ucrânia não seja incluída na Organização como se pretende.

No meio do aumento da tensão, o governo norte-americano, sob a alegação de um conflito iminente, pediu a todos os seus cidadãos que saiam da capital da Ucrânia, Kiev.

Apesar das ameaças, a OTAN parece dividida. A Alemanha vem sendo instigada a tomar uma posição mais dura em relação à Rússia, já que tem mantido um posicionamento, até agora, pouco contundente, segundo integrantes da OTAN. A aparente tolerância alemã tem muito a ver com a sua dependência energética. A Alemanha é o maior comprador mundial de gás russo, recebendo mais da metade de suas exportações, enquanto a média dos países da União Europeia está na faixa dos 40%. Também pesa na posição alemã o gasoduto Nord Stream 2, que embora ainda não esteja em funcionamento, à espera de licenciamento, liga Rússia e Alemanha em 1,2 mil quilômetros. O gasoduto, operado pela estatal russa Gazprom, que deve suprir 26 milhões de lares alemães.

No meio de uma pandemia que não termina, um conflito entre Rússia e o Ocidente é a última coisa que poderia acontecer. Isso porque seus reflexos mundo afora serão desastrosos.

Fernanda Delgado, diretora executiva corporativa do Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustível (IBP), professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), que tem se debruçado sobre a questão da transição energética e os impactos geopolíticos do setor de energia no mundo, vê com ressalvas essa tensão que se espalhou nas últimas semanas, embora se mostre preocupada com os impactos de uma evolução para um conflito.

Como você está vendo o aumento da tensão com uma possível invasão russa à Ucrânia?
Para a mídia russa, a possível invasão supostamente viria do outro lado. Lá, propaga-se a narrativa de que quem vai invadir a Ucrânia são os Estados Unidos e a OTAN, a aliança militar do Atlântico Norte, para cercar a Rússia, desestabilizar o governo de Vladimir Putin e até ter o controle sobre os recursos energéticos russos. Isso para a gente ter ideia da guerra de narrativas já existente e que cerca a tensão russo-ucraniana e, por conseguinte, entre Rússia e Ocidente. Essa versão paralela nos parece muito tendenciosa, mas do lado de cá também temos esses tipos de versões.

A imagem predominante sobre a Rússia é aquela de um país expansionista, pronto para assegurar que o seu entorno estratégico ou os países da ex-URSS, como a própria Ucrânia, continuem sujeitos aos interesses do Kremlin e, ainda, a imagem de um país rico em petróleo e gás capaz de pressionar a Europa com interrupções no fornecimento de gás pelos diversos gasodutos que ligam a Rússia ao continente europeu.

Enfim, nós temos que ter cuidado com as versões em torno das tensões geopolíticas, não porque elas seriam de todo falaciosas, mas porque elas servem a interesses estatais ou interesses corporativos específicos.      

Qual a importância estratégica da Ucrânia nesse jogo político?
A Ucrânia se tornou a fonte de maior tensão entre a Rússia e o Ocidente desde a incorporação, anexação ou invasão (dependendo da narrativa) da Península da Crimeia em 2014, que reverberou no atual conflito no leste ucraniano entre forças pró-Rússia e as forças oficiais do governo em Kiev. Vale lembrar que a Crimeia pertencia à Rússia até o presidente Kruschev da antiga União Soviética transferi-la para a Ucrânia em 1954. Essa península possui portos e uma base naval no Mar Negro extremamente relevantes para Moscou porque lhe garante a segurança e o acesso aos mares quentes.

Então, quando o governo do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, um aliado da Rússia, foi retirado do poder em 2014 após fortes manifestações populares rejeitarem essa subserviência de Yanukovych à Rússia e defenderem uma aproximação com a União Europeia, qual foi a reação da Rússia? Recuperar a Crimeia, sob o argumento da autodeterminação dos povos, pois a população de maioria de falantes russos assim o desejava. Ao mesmo tempo, na região do Donbass, no leste da Ucrânia, de maioria de falantes russos, as repúblicas de Donetsk e Luhansk se proclamaram independentes ao governo de Kiev, embora nem mesmo a Rússia os reconheça oficialmente. Mas os conflitos que ali surgiram são evidentemente apoiados pelos russos.

Além dessa importância específica para a Rússia, a Ucrânia é uma importante rota para os dutos que escoam a produção de gás russo para a Europa. Por isso que, quando a construção do gasoduto Nord Stream 2 no Mar Báltico foi concluída no ano passado – um projeto muito polêmico, mas também muito importante tanto para a Alemanha quanto para a Rússia –, a então chanceler Angela Merkel precisou de suas habilidades diplomáticas e conciliadoras para garantir um compromisso de Putin com a prorrogação de contratos de transporte de gás com a Ucrânia, sem os quais a economia deste país entraria em colapso.

Em resumo, há uma importância geográfica, como o acesso ao Mar Negro; histórico-cultural para a Rússia; político-estratégica, por amortecer pressões vindas tanto do Ocidente quanto da Rússia; e, econômica, por ser uma rota favorável à segurança da oferta de energia para a Europa e favorável também à segurança da demanda pelos recursos energéticos produzidos pela Rússia.

Que interesses geopolíticos estão em jogo?
Desde a queda de Yanukovych, os governos seguintes na Ucrânia procuraram se aproximar do Ocidente. Com a União Europeia foi assinado um acordo de associação para estreitar laços políticos e econômicos, e com a OTAN o atual governo de Volodymir Zelensky tem buscado se tornar um membro da aliança militar, o que dificilmente irá acontecer. Mas com essa trajetória de afastamento da Rússia e estreitamento com o Ocidente, o que está em jogo é a soberania da Rússia e a capacidade de negar uma ameaça direta do Ocidente em sua fronteira, não apenas hoje, mas para o futuro. O que está em jogo também é a própria reputação de Vladimir Putin e seu legado para a história do país. Lembre-se que o presidente Boris Yeltsin foi próximo ao Ocidente no imediato período pós-Guerra Fria e, hoje, é muito mal lembrado pelos russos. Ou seja, permitir que a Ucrânia, que é um espaço tradicional de influência, berço do antigo Império Russo e entorno estratégico, seja um aliado ocidental e talvez um membro da OTAN, seria uma grave perda com reverberação histórica, refletindo em menor capacidade de negociação com o Ocidente e menor projeção dos interesses da Rússia no sistema internacional.

Existem, então, pelo menos duas unidades tentando preservar seus interesses. De um lado, a Rússia tentando manter sua tradicional zona de influência, como mencionado. Por outro, a União Europeia, favorável não apenas a acordos econômicos e à expansão dos negócios, mas também a valores compartilhados como o respeito aos Direitos Humanos, à liberdade de imprensa e à regularidade de eleições democráticas, limpas e transparentes, elementos que são alvo de críticas à Rússia pelo Ocidente.

Eu adicionaria ainda um interesse doméstico vindo dos Estados Unidos, já que estamos próximos de eleições legislativas decisivas para o governo de Joe Biden, que pode perder a maioria democrata nas duas casas. A Casa Branca afirmou ao presidente da Ucrânia, Zelensky, o compromisso com a soberania e a integridade territorial de seu país, garantindo que uma invasão russa levaria Washington e seus aliados europeus a responderem com medidas econômicas severas, o envio de material de defesa à Ucrânia e o fortalecimento das capacidades militares do grupo Bucareste Nove (B9), composto pelos países participantes da OTAN no flanco oriental. Então, essa linguagem mais dura utilizada pelo Presidente Biden contra a Rússia é também uma oportunidade político-eleitoral de demonstração de força dos Estados Unidos no exterior, especialmente após a retirada do Afeganistão, que para a opinião pública foi bastante humilhante.

Você acha que o presidente Putin está blefando, buscando jogar lenha na fogueira, para conseguir um acordo que fortaleça sua posição?
O presidente Putin busca reconquistar o poderio da Rússia sobre o Leste Europeu, que sempre esteve ou sobre a zona de influência russa ou compondo seu território, como é o caso da Ucrânia.

Para a Rússia, a anexação formal da região de Donetsk, diferentemente da península da Crimeia, não é de grande relevância. A região conta com separatistas russos, mas tem pouca importância estratégica, ao ponto de não valer todo o esforço e desgaste internacional apenas para anexá-la.

Da mesma forma, é impensável uma anexação da Ucrânia como um todo; no atual contexto internacional, é praticamente impossível uma anexação de um país reconhecido com área de mais de 600 mil quilômetros quadrados – maior que a Alemanha.

A inteligência britânica afirmou recentemente que o governo russo buscava instalar um governo fantoche na Ucrânia; esse seria o ideal do ponto de vista russo, tendo em vista a experiência de sucesso com a vizinha Bielorrússia. O caminho mais fácil para isso seria desestabilizar internamente a Ucrânia e forçar um acordo que retorne à representatividade parlamentar aos separatistas.

Quanto ao objetivo declarado: que os países ex-comunistas deixem a OTAN e que Ucrânia e Geórgia nunca passem a integrá-la, novamente se vê uma tentativa de expandir a influência russa. Contra Estônia, Letônia, Polônia e Romênia, não se pode fazer nada, pois a OTAN não abriria mão desses membros, mas impedir a entrada de novos e abrir modus operandi para desestabilização de novos países é uma solução bem factível.

Na proposta inicial da negociação, sempre se pede mais para depois conseguir o que se quer, ainda mais considerando no futuro uma situação favorável à Rússia, com possível ocupação de Donetsk e maior poder de barganha com o fornecimento de gás para a Europa Ocidental.

Como essa situação já impactou os mercados em termos de preços e suprimento?
Desde a tomada da Crimeia em 2014, são aplicadas sanções contra a Rússia, especialmente para o setor russo de óleo e gás, que tem restrições para acessar o mercado de capitais. Dois anos depois, a Rússia se voltou para a Arábia Saudita para coordenarem a oferta de petróleo, uma experiência que viabilizou a plataforma OPEP+, que reúne a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, onde os sauditas têm muita influência, mais um grupo de países também ricos em petróleo sujeitos a, como tem se visto, uma liderança da Rússia nas negociações internas. É claro que a criação da OPEP+ está também relacionada à necessidade desses países em pressionar a concorrência do shale gas nos Estados Unidos, mas é possível relacionar esse fato histórico no mercado petrolífero ao rearranjo geopolítico decorrente da frieza ou afastamento da Rússia em relação ao Ocidente desde pelo menos o evento na Crimeia.

No que diz respeito ao mercado de gás, que tem um escopo mais regionalizado, verificou-se ao longo de 2021 um aumento de preços sem precedentes. Certamente, a escalada dos preços do gás está ligada ao crescimento da demanda com a recuperação econômica e aos encalços da transição para energias mais limpas, que levaram a baixos estoques de gás na Europa. Porém, a tensão russo-ucraniana agudiza esse aumento dos preços porque ocorre em uma região sensível.

Segundo a Energy Information Administration, do Departamento de Energia dos EUA, a Ucrânia tem a maior infraestrutura de trânsito de gás natural no mundo, com uma capacidade de saída de mais de 140 bilhões de metros cúbicos (bcm) e, depois da Rússia, a maior capacidade de armazenamento da Eurásia. A Ucrânia atende uma demanda entre 82-93 bcm de gás russo ao mercado europeu por ano, principalmente pelos gasodutos Brotherhood e Soyuz. Então, diante disso, a possibilidade de uma invasão da Rússia sobre a Ucrânia colocaria em risco o suprimento de gás para a Europa. Entre novembro e dezembro de 2021, quando ocorre essa movimentação de 100 mil soldados russos em exercícios militares próximos à fronteira com a Ucrânia, os preços Dutch TTF, o benchmark europeu, saltou de 68 euros no dia 10 de novembro para 180 euros no dia 21 de dezembro; e a expectativa entre comercializadores do gás é de que o movimento de alta dos preços e a volatilidade persistam ao longo de 2022.

E para o Brasil? O quadro, com inflação acima dos dois dígitos, pode trazer novas pressões inflacionárias?
Sim, um cenário de instabilidade internacional pode se refletir no Brasil por meio de impactos nas cadeias de suprimentos; com menos oferta de produtos, tende a haver uma pressão inflacionária.

No que tange aos combustíveis, um conflito envolvendo a Rússia, segundo maior produtor de petróleo e gás natural do mundo, tende a elevar mais ainda o preço dessas commodities, o que se refletiria no Brasil, que tem uma política de preços de paridade de importação para os combustíveis, ou seja, os preços de combustíveis no país, já bastante elevados, é impactado pelo câmbio e pelo preço internacional.

No mais, vale lembrar que o Brasil tem na Rússia um grande parceiro comercial, principalmente na área de insumos agrícolas. Segundo a Associação Nacional para a Difusão de Adubos (ANDA), o Brasil importa 85% dos fertilizantes agrícolas, e é a Rússia o seu principal fornecedor. Logo, um conflito naquela região poderia desencadear diminuição no fornecimento de fertilizantes e gerar pressão inflacionária no ramo de alimentos, na cesta básica do brasileiro.

Você vê espaço para negociação política, já que o presidente russo disse que a OTAN tem avançado fronteiras, e que a questão central é a segurança russa que, segundo ele, estaria ameaçada?
Sempre há espaço para negociação política, mas a grande questão é que a situação tomou uma proporção tal que se uma das partes recuar e a outra não, obrigatoriamente a primeira sai perdendo; seria necessário que ambas as partes recuassem, mas não têm incentivos para tal. Da parte russa, um recuo seria renunciar à hegemonia histórica sempre exercida no Leste Europeu; da parte americana, haveria o risco de mais um fracasso da política externa menos de um ano após a queda de Cabul e a evacuação problemática de americanos do Afeganistão. Para ambos os governos, um sinal de fraqueza não é uma opção, o que torna mais difícil ainda uma saída pela negociação política.

Para a Rússia, realmente há uma questão de disputa de hegemonia, que se traduz em diversos países, antes sob sua influência, passando a integrar a OTAN, o que traz consigo um problema de segurança, posto que o país se encontra, pela Europa, Pacífico e Ártico, cercado pela OTAN ou seus aliados. Recentemente, Finlândia e Suécia passaram a demonstrar interesse em juntar-se à OTAN. Vale lembrar também que a aliança militar surgiu justamente para fazer frente à Rússia, à época ainda sob o regime comunista.

A negociação política nesta semana também envolveu a China, já que um conflito no Leste Europeu teria uma repercussão global. O Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, em conversa com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, afirmou que as preocupações da Rússia sobre a Ucrânia devem ser levadas a sério e resolvidas, e que ainda as partes deveriam abandonar a mentalidade da Guerra Fria em prol de um mecanismo de segurança equilibrado para a Europa. Vale citar que a China também tem suas próprias questões de segurança, e que um afrouxamento de questões soberanas a um país antagonista ao Ocidente, como a Rússia, se repercutiria em negociações futuras com a China sobre suas questões sensíveis, especialmente o caso de Taiwan.

O que essa tensão afeta projetos e planos para uma transição energética?
Um cenário de instabilidade na Europa ressalta a questão da segurança energética, principalmente dos países envolvidos; dessa forma, há de se esperar que o enfoque desses esteja mais voltado a garantir suprimento de energia do que em avançar em projetos de transição energética.

Todavia, para a Europa Ocidental há a possibilidade de investimentos em alternativas ao gás natural russo com vistas a diminuir a dependência do país em um cenário de crescente animosidade. Essas alternativas podem envolver soluções dentro ou fora da transição energética. No Leste Europeu, por outro lado, a saída deve se dar pelos combustíveis fósseis, dada a importância dessas fontes de energia para esses países, o fato de ser uma solução menos custosa e de mais rápida implementação.

Qual a tendência, a seu ver, dos preços do barril de petróleo? E o gás, como fica?
Na última semana, vimos o preço Brent do barril de petróleo atingir a máxima de US$ 89 e o preço WTI, US$ 87, valores não vistos desde outubro de 2014. Diferentemente das condições daquele período, que seriam abaladas pela explosão da oferta de shale nos Estados Unidos, o contexto atual revela uma franca recuperação dos preços desde que o crash da demanda com o advento, em 2020, da pandemia da COVID-19 reduziu o Brent a menos de US$ 20. Em 2021, os preços subiram 50%, pois a demanda pelos combustíveis fósseis foi acelerada pelos incentivos para a recuperação econômica “pós-pandemia”, o avanço das campanhas de vacinação e a flexibilização das medidas restritivas à circulação de pessoas. A previsão entre analistas do mercado é o preço alcançar US$ 100 no terceiro trimestre deste ano, à medida que a demanda acelerada continue a pressionar a capacidade de oferta de grandes produtores, como é o caso da Rússia. O mesmo equivale aos fundamentos de mercado do gás natural.

Então, aliado à tensão dos fundamentos de mercado, oferta, demanda e estoques, as questões de natureza geopolítica também vão continuar impactando os preços, porque a ameaça do suprimento dos recursos energéticos permanece à espreita.

Preços do petróleo
(WTI vs BRENT, USD/barril)

Fonte: Bloomberg.

Agradeço a colaboração de Lívio Ribeiro, pesquisador associado do FGV IBRE, no fornecimento dos dados para a elaboração do gráfico.
 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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