Em Foco

Novo drible na ancoragem fiscal brasileira

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

O rápido processo de vacinação no Brasil, depois de grandes dificuldades meses atrás pela falta de imunizantes, já está se refletindo na volta a uma normalidade da atividade econômica, com progressiva flexibilização das medidas de restrição sanitária. Se por um lado com a vacinação estamos saindo de um período sombrio em termos sanitários, o que possibilitaria uma retomada mais forte da economia, por outro a aceleração da inflação, que é um fenômeno mundial, a crise hídrica, o desemprego, a questão fiscal e as eleições presidenciais do próximo ano continuam dificultando previsões mais otimistas sobre o crescimento em 2022.

O golpe mais recente para as expectativas macroeconômicas foi dado nesta quinta-feira (21/10), com a decisão do governo de propor, dentro da PEC dos Precatórios, uma mudança na regra de correção do teto de gastos de forma retroativa, com a qual se abre um espaço calculado em R$ 40 bilhões para o ano que vem. O objetivo dessa mudança é bancar um aumento para R$ 400 no benefício do Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, com validade até dezembro de 2022, quando se encerra o mandato do presidente Jair Bolsonaro.  Juntamente à mudança no esquema de pagamento dos precatórios, que já alimentava severas críticas de analistas,  o rombo no teto de gastos em 2022 será de R$ 94,4 bilhões, de acordo a estimativas da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI). A manobra provocou o pedido de demissão de quatro secretários do Ministério da Economia, incluindo os gestores dos cofres públicos: o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Jeferson Bittencourt. Mais tarde, foi a vez do secretário de Petroleo, Gás Natural e Biocombustíveis anunciar sua saída do governo, na esteira da promessa do presidente, em discurso no interior de Pernambuco na própria quinta-feira, de pagar um auxílio de R$ 400 para caminhoneiros autônomos – cerca de 750 mil – enfrentarem a alta do diesel, e dessa forma conter as ameaças de greve da categoria.

Bolsa e dólar, que dois dias antes já começaram reagir negativamente aos planos do governo – o que levou ao cancelamento de uma cerimônia de lançamento do Auxílio Brasil – fecharam esta quinta refletindo o forte temor dos investidores com o caminho das contas públicas. O Ibovespa fechou em queda de 2,94%, no menor nível de 2021, depois de ter alcançado uma mínima de -4,57%. Já o dólar fechou o dia cotado a R$ 5,66, maior patamar desde meados de abril.  Mesmo com a debandada anunciada no Ministério da Economia, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou nessa mesma noite o novo parecer do relator do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) à PEC dos Precatórios, prometendo um fechamento da semana não menos turbulento no mercado.

Sem uma sinalização clara de responsabilidade fiscal, a possibilidade de se controlar parte das determinantes que minam a recuperação econômica é cada vez menor. Como ressaltou o Boletim Macro FGV IBRE divulgado esta semana, “as incertezas que permeiam o Orçamento no ano que vem pressionam ainda mais a taxa de câmbio, tornando o cenário inflacionário no curto prazo ainda mais desafiador. Não há saídas fáceis para o aumento de gastos”. Como ressaltam os pesquisadores do IBRE, “a situação fiscal continua sendo o principal ponto de preocupação do país”, e a pressa em definir o futuro das políticas sociais agrava ainda mais esse cenário, já que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe restrições para a aprovação de novos programas sociais em um ano eleitoral.

Antes desse novo vendaval provocado pelo governo, as projeções feitas por mais de 100 instituições financeiras e consultorias para o Boletim Focus do Banco Central mostram que o Produto Interno Bruto (PIB) vai crescer 1,54% no ano que vem. O Boletim Macro FGV IBRE de outubro projeta um crescimento igual, de 1,5%, enquanto o governo tem uma estimativa de expansão de 2,5%.

No Boletim, os pesquisadores também ressaltam que o efeito do controle da pandemia é uma poderosa ferramenta para a normalização da economia, mas que a heterogeneidade entre os setores ainda é elevada. Com o processo de reabertura e a mobilidade urbana avançando, os setores que foram mais afetados pelo choque sanitário em 2020 estão crescendo. Em particular, os serviços prestados às famílias têm mostrado bons resultados nos últimos meses, e tudo indica que este processo vá continuar, a julgar pelos resultados das Sondagens do FGV IBRE. Concomitantemente, porém, o varejo e a indústria apresentam resultados negativos, e as expectativas para os dois não são favoráveis.

Como mencionado no texto, “os indicadores relacionados ao varejo têm mostrado uma queda na demanda por itens mais sensíveis à renda, sugerindo serem resultado de um choque negativo da inflação no poder de compra. Este cenário tem sido destacado em nossas análises há alguns meses. A retomada lenta da renda das famílias, com a redução nos valores recebidos como resultado de políticas distributivas, levaria a uma queda da massa ampliada de rendimentos. A aceleração mais expressiva da inflação apenas intensificou esta tendência, a despeito da retomada do setor serviços”.

Número Índice de Ocupados e Massa de Rendimentos do Trabalho Efetivos por mês
(séries mensalizadas)


Fonte: PNADC Trimestral. Elaboração: FGV IBRE.

Esse comprometimento da renda dos consumidores, que vem sendo corroída pela inflação e pela subida dos juros – o IPCA teve alta de 10,25% nos últimos 12 meses encerrados em setembro –, tem levado a um aumento dos saques na poupança, segundo dados recentes do Banco Central. Em setembro, os saques líquidos – diferença entre o que é retirado e o que é depositado nas cadernetas de poupança –, somaram R$ 7,719 bilhões, valor recorde para o mês. Este ano, as aplicações acumuladas em caderneta de poupança estão negativas em R$ 23,349 bilhões.

No mundo, a pandemia também segue sob controle, embora nas últimas semanas aumentaram as preocupações com a atividade econômica. Para os analistas do Boletim, “em particular, na Europa, mesmo com o resultado positivo da indústria em setembro, os gargalos da cadeia de oferta devem persistir e manter as pressões inflacionárias. Além das questões relacionadas ao setor automobilístico, há em curso uma crise energética que tem sido mais intensa na Europa e na China. Há um problema de desabastecimento de gás natural na Europa, com impactos tanto para o consumidor quanto para a indústria.

Na China, a indústria está sofrendo com a escassez de carvão e da eletricidade que é gerada com seu uso. Além de enchentes na principal região produtora de carvão, a pressão do governo para a redução de gases poluentes tem intensificado o problema. Com isso, o PMI industrial de setembro voltou a cair, ficando em nível contracionista pela primeira vez desde abril de 2020. Um elemento adicional no cenário econômico chinês é a incerteza no mercado imobiliário. O risco de insolvência de uma das maiores incorporadoras do país pode desencadear uma crise no setor. E, com esse pano de fundo, como esperado, o PIB chinês desacelerou, crescendo apenas 4,9% no terceiro trimestre em relação ao mesmo período do ano passado. No trimestre anterior, o crescimento havia sido de 7,9%”.

Nos Estados Unidos, a questão central é a retirada dos estímulos monetários, que devem começar no mês que vem, e as consequências sobre o crescimento e a inflação.

Em que pese esse quadro relativamente favorável na saúde pública, ainda há diversos desafios, tanto para a economia mundial quanto para a brasileira, no caminho da recuperação depois do tombo gerado pela pandemia.  E que, no caso braileiro, poderá se tornar tão mais tortuoso quanto menos se respeitem os limites fiscais do país. 

Alguns destaques do Boletim Macro FGV IBRE deste mês.

• Índices de Confiança

Os Índices de Confiança, tanto dos empresários quanto dos consumidores, se estabilizaram em outubro, a julgar pelos resultados prévios para o mês. Na parte empresarial, o setor de serviços se destaca nessa virada para o último trimestre do ano, em especial no segmento que mais sofreu com as medidas restritivas. Por parte dos consumidores, o nível de confiança se mantém em patamar muito baixo, em particular nas rendas mais baixas. Para os próximos meses, a piora das expectativas adiciona ainda mais incerteza sobre o ritmo de recuperação.

Confiança de consumidores e empresários
(Com ajuste sazonal, em pontos)


Fonte: FGV IBRE.

• Inflação

O agravamento da crise hídrica e os aumentos do preço do petróleo estão elevando a contribuição dos energéticos na composição da inflação. Nos últimos 12 meses, quase 50% da inflação acumulada pelo IPCA/IBGE, que em setembro foi de 10,25%, partiram dos reajustes da energia e dos combustíveis. Diante de tais fontes de pressão inflacionária, o IPCA de 2021 deve fechar o ano em 9,1%, com os energéticos dominando a cena.

O peso dos combustíveis e da energia na inflação


Fonte: Elaboração própria com dados do IPCA/IBGE.

 

Preços monitorados
(Variação em doze meses)


Fonte: Banco Central.

• Fiscal

A aparente percepção de tranquilidade diante da série de resultados positivos do setor público dos últimos meses não resiste a um olhar mais atento para outras variáveis fiscais. Apesar do resultado primário recorde para o setor público consolidado obtido no mês de agosto, seus fatores condicionantes carecem de motivos para comemoração. Para manter a sustentabilidade fiscal a nível subnacional, em meio a fortes demandas pela atuação estatal nessas esferas, os gestores locais não poderão se dar ao luxo de se deixar levar pelo aumento das receitas deste ano e deverão resistir ao impulso de ampliar os gastos para o próximo exercício.

• Em Foco

Os impactos da pandemia no mercado de trabalho nas regiões brasileiras são analisados na seção, mostrando as grandes disparidades regionais acentuadas pelo longo período das restrições sanitárias.

Comparativo das taxas de desemprego no período 2019 e 2020
(Brasil e grandes regiões)


Fonte: elaboração FGV IBRE com base nos micro dados da PNADC/IBGE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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