Em Foco

Crise política e caos sanitário

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Na segunda feira, dia 29, acordei com um fio de esperança de que as discussões no Brasil estariam concentradas, finalmente, no combate à pandemia do coronavírus que matou no último dia de março o número recorde de 3.950 pessoas. Com isso, o mês fechou com 66.868 mortos. Desde o começo da pandemia, com o primeiro caso registrado em fevereiro, os óbitos no Brasil por Covid-19 chegaram a 321.886. Como havia escrito no dia 5 do mês passado, março seria um mês sombrio, o que, infelizmente, se confirmou.

E as perspectivas para este mês não são muito animadoras. Haverá nova redução no fornecimento de vacinas, não está havendo testagem suficiente da população, e o presidente prossegue contrário às medidas de isolamento, restrições à locomoção e lockdown, medidas que vem sendo adotadas em várias partes do mundo, também com carência de vacinas, como forma de barrar o avanço do vírus. A esperança é que como a pandemia parece funcionar por ondas, como mostram as séries desde que ela surgiu, haja um arrefecimento nos contágios e mortes. Mas sem medidas e vacinas, essa possibilidade fica cada vez mais improvável.

Brasil – mortes por Covid-19 mês a mês


Fonte: Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde.

Mas, como dizia, minha esperança era de que o foco central fosse a pandemia. No surgimento de novos medicamentos, como o soro do Butatan que já pediu autorização para iniciar testes clínicos em humanos; dos medicamentos e coquetéis que estão sendo testados para aumentar a imunidade em alguns países, alguns deles já com comprovada eficiciência. Das novas vacinas que serão produzidas no Brasil. De novas autorizações dadas pela Anvisa para uso emergencial, ou permanente, de novas vacinas no país. De um esforço concentrado dos Três Poderes para combater o inimigo invisível e mortal. Com a minha idade, ainda carrego muita ingenuidade.

Depois de um final de semana tenso, com pessoas próximas infectadas e três dos meus quatro netos testarem positivo para a COVID-19, mas que felizmente estão bem, sem sintomas, já que estão na melhor fase da vida, adolescência e pré-adolescência, mergulhei no tsunami gerado pelo governo, com a troca de seis ministros, em pleno auge da pandemia. E a renúncia dos três comandantes das Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica, fato inédito na história brasileira. Há menos de um mês, outro ministro, o da Saúde, Eduardo Pazuello, pressionado pela má condução no combate à pandemia, deixou o cargo. O noticiário e a discussão sobre estratégias de combate a COVID-19 foram por água abaixo, ficando em segundo plano.

No mesmo dia em que a disputa política aumentava a pressão e temperatura no país, a Organização Mundial de Saúde (OMS) informava que 38% das mortes ocorridas nas últimas 24 horas no mundo tinha acontecido no Brasil que representa apenas 2,7% da população mundial.

Com o Brasil se tornando o epicentro da pandemia, com a espiral de casos e mortes não parando de subir, se espraiando para camadas mais jovens da população, o mundo começa a ser assombrado por uma possível nova onda, engrossada, em boa parte, pelos números brasileiros. Também o aumento de casos onde a vacinação está avançada, como nos Estados Unidos, pode estar relacionada a um relaxamento nas medidas de isolamento e ao aumento da testagem da população, além, é evidente, de uma propagação mais veloz do virus. Segundo o Worldometers, a média móvel de novos casos e de mortes no planeta, que havia iniciado uma curva descendente, começou a embicar para cima, novamente.

Covid-19 – dados globais
Janeiro/20 a março/21


Fonte: Worldometers.

Com o foco do debate e preocupações mudando de rumo, deixando a pandemia em segundo plano, pipocaram declarações defendendo que não há risco de uma crise institucional com as trocas ministeriais e a saída dos chefes das Forças Armadas. Mas, criou-se muita tensão e uma crescente preocupação tanto aqui dentro quanto lá fora com a possibilidade de o país entrar em um caos, quadro que foi minimizado, ou descartado, pelos próprios comandantes que saíram. O que foi reforçado por vários militares da ativa e da reserva, além de membros de outras instituições, como o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF), entre outros. Vários analistas acreditam que a crise com os militares foi um desgaste para o presidente, abrindo uma brecha para que as Forças Armadas possam ir se retirando do governo. Outros, que Bolsonaro saiu fortalecido, mostrando força ao trocar os três comandantes militares. Mas são especulações que só o tempo confirmará, ou não.

Como disse Marcos Nobre, professor da Unicamp, filósofo e cientista político em entrevista à Conjuntura Econômica de março, “a característica da discussão política desde 2018 é subestimar a capacidade de Bolsonaro de superar obstáculos e manter sua base apoio em circunstâncias desfavoráveis e cambiantes. A cada situação, forças do campo democrático dizem: agora não tem mais jeito; agora ele está acabado; agora Bolsonaro vai perder apoio, e isso não aconteceu. Ou seja; existe muita torcida e pouca articulação política”. E Bolsonaro continua mantendo seus 25% 30% de aprovação. Que é sua base de apoio, até agora, para ir ao segundo turno em 2022 e brecar qualquer tentativa de um possível impeachment.

Mas há muitas sobras pairando. O novo ministro da Defesa, Braga Neto, em sua primeira nota oficial, disse que a revolução de 1964, que completou 57 anos dia 31 de março, “pacificou o país”. O líder do PSL na Câmara dos Deputados, Victor Hugo, defendeu no último dia 30, em reunião com líderes, a votação de um projeto de lei que, se aprovado, daria ao presidente o poder de acionar, durante a pandemia, o dispositivo da chamada “mobilização nacional”, prevista na Constituição, no caso de uma agressão estrangeira, ou seja, uma guerra. Ideia que morreu no nascedouro.

É como algo pudesse ocorrer de uma hora para outra, dado o enorme grau de incerteza. Como no Deserto dos Tártaros, livro de Dino Buzatti escrito em 1940, quando Giovanni Drogo, um jovem oficial é enviado à uma fortificação, cercada por uma planície a perder de vista, onde nada acontece há séculos. Mas há a expectativa da guarnição de que, a qualquer momento, um inimigo invisível, surgido do nada, poderia atacar a fortaleza.

Por falar em incerteza, enquanto a confiança do consumidor nos Estados Unidos, segundo o Conference Board, subiu cerca de 20 pontos em março, o maior nível desde o início da pandemia – possivelmente, com a rápida vacinação da população norte-americana, -, por aqui o Índice de Confiança do Consumidor, calculado pelo FGV IBRE, recuou 9,8 pontos no mesmo período em relação ao mês anterior, enquanto a Confiança Empresarial seguiu o mesmo caminho, recuando 5,6 pontos, menor nível desde junho de 2020.

Índices de confiança
(com ajuste sazonal)


*Índices de Confiança – agregação dos respectivos índices dos setores de Serviços, Indústria, Construção e Comércio, por pesos econômicos.
Fonte: FGV IBRE.

E as notícias ruins não param. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) negou na última terça feira, dia 30, a certificação de boas práticas de fabricação à indiana Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, vacina que o governo informou ter assinado contrato de compra de 30 milhões de doses. E proibiu, posteriormente, que o governo importe as vacinas.

Com isso, uma vez mais, despenca o cronograma de vacinas que estariam disponíveis pelo Ministério da Saúde. No último cronograma do dia 19 de março, o ministério informava que deveria distribuir 47,3 milhões de vacinas em abril. Na última quarta-feira, o valor caiu quase pela metade, para 25,5 milhões de doses, com chances de ser reduzido ainda mais, pois há risco de atraso na fabricação interna de vacinas.

O cronograma é irreal pois, na verdade, só contamos com duas vacinas, efetivamente: a Coronavac e a AstraZeneca (até o final de março, cerca de 85% das vacinas fornecidas saíram do Butantan). O resto são intenções de compra, ou contratos assinados, e torcida para que os laboratórios antecipem a entrega de vacinas ao Brasil.

Como diz o ditado popular, estamos num mato sem cachorro. Só com a produção do Butantan e da Fiocruz, vamos demorar uma eternidade para vacinar boa parte da população, campo fértil para o vírus se propagar, criar novas variantes. Esta semana, uma nova variante, semelhante à da África do Sul, foi detectada no interior de São Paulo, aumentando o medo, a apreensão e a incerteza sobre o futuro de milhões de brasileiros.

E o presidente, mantendo o seu mantra, voltou a atacar na última quarta-feira as medidas de isolamento ao declarar que “ essa política, entendo eu, esse isolamento, com supressão do direito de ir e vir, extrapola — e muito — até mesmo um estado de sítio. Eu apelo a todas as autoridades do Brasil que revertam essas medidas e permitam que o povo vá trabalhar". O contrário do que foi defendido pelos presidentes do Senado e da Câmara e do ministro Queiroga, da Saúde, no mesmo dia, após a primeira reunião do Comitê de Combate à Covid. Não há nenhuma relação entre o estado de sítio, que suprime liberdades, e as ações que estão sendo adotadas por governadores e prefeitos como forma de conter o avanço da pandemia. É a corda sendo esticada ao máximo.

É possível que ao publicar essa Nota, seja atropelado por novos acontecimentos. Se ocorrerem, espero que sejam no caminho da ciência e da preservação de vidas, como ocorreu na última quarta-feira, dia 31, com a Anvisa aprovando o uso emergencial da vacina da Janssen que, diferente da Coronavac e da AstraZeneca, só precisa de uma dose para a imunização. Temos contratadas 38 milhões de doses dessa vacina. Que só devem começar a chegar no segundo semestre.

A travessia deste primeiro semestre será difícil e angustiante. A margem oposta parece nunca chegar, ficando mais longe a cada dia. Mas só nos resta manter a esperança. E, para quem pode – e são muitos - manter o isolamento, por mais duro e difícil que isso esteja sendo, depois de mais um ano de pandemia, além do uso de máscara.

Agradeço a Viviane Seda e Rodolpho Tobler pelo fornecimento de dados para a elaboração dos gráficos sobre os Indices de Confiança.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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