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Onde os fracos não têm vez

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Com tantos problemas e pepinos que vem se acumulando em todas as áreas – econômica, política e social –, resolvi relatar a primeira ida a um hotel desde que a pandemia começou. Sair um pouco da discussão econômica, se isso é possível. Essa semana, por exemplo, o crescimento para 2022 já está sendo revisado para baixo de 1% pelo mercado, com possibilidades de ser negativo.

Pode parecer para muitos surreal só agora ter tomado essa decisão, quando se sabe que muita gente que pode ser classificada de corajosa, imprudente ou descrente da contaminação ou da própria pandemia, se aglomera em bares e restaurantes, fazem festas, viajam, seguindo uma vida normal já a bastante tempo.

O sentimento ao sair da bolha é como se fosse um ser pré-histórico perante muitas pessoas que não entendem a prudência e cuidados que ainda estamos tomando. A pergunta mais frequente é: mas vocês já tomaram a segunda dose....

Depois de 18 meses sem se hospedar em um hotel, tomamos coragem e colocamos o pé na estrada, aproveitando o feriado do Sete de Setembro. Mesmo vacinados com a segunda dose, um certo medo nos acompanhou durante a viagem: como seria ficar em um hotel, ir a um restaurante, fazer trilhas (o que parecia mais simples, dado o ar livre e poucas pessoas caminhando). Enfim, era uma volta, ainda que com cuidados –  uso de máscara, um certo distanciamento social, álcool gel a toda hora – a uma nova realidade imposta pela pandemia que desembarcou por aqui em fins de fevereiro do ano passado, ainda que timidamente, ganhando musculatura nos meses seguintes e explodindo entre março e junho deste ano.

Depois do pico, novos casos e mortes desabam
(Covid-19 – Brasil)

 


Dados de setembro até o dia 16. Fonte: Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde.

Ao sair do Rio, onde a variante Delta já domina as contaminações mas, felizmente, não tem levado a um aumento de novos casos e mortes, nos invadiu um sentimento de liberdade. Trânsito, estradas, árvores, chão de terra, vacas pastando, zona rural do sul de Minas para onde estávamos indo. A mudança drástica de paisagem, com as majestosas e deslumbrantes serras mineiras e seus vales profundos, com seus vários tons de verde, muitas vezes parcialmente encobertos por uma fina carreira de nuvens, era um bálsamo para os olhos depois de tanto tempo confinados no apartamento, com “fugas” esporádicas para casas alugadas em uma praia com pouco movimento, um apartamento meio que isolado em Ribeirão Preto ou para São Sebastião, no litoral de São Paulo, na casa do Samuel Pessoa, meu companheiro de trabalho aqui no FGV IBRE, e de sua querida irmã Marê, que, gentilmente, vendo nossa aflição de confinamento, abriu as portas de sua casa às margens do Canal que separa São Sebastião de Ilha Bela, para onde “fugimos” por duas vezes.

Chegamos ao nosso destino, Conceição de Ibitipoca, com pouco mais de mil habitantes, distrito de Lima Duarte, pouco antes do anoitecer, já com dois desafios pela frente. Um mais leve, ir ao restaurante do hotel. O outro, bem mais desafiador fisicamente: no dia seguinte fazer uma trilha de mais de 15 quilômetros rumo a Janela do Céu. As informações diziam que os primeiros quatro quilômetros seriam difíceis, pois eram íngremes, melhorando aos poucos. Sob um sol a pino, nenhuma vegetação para se proteger, as montanhas e vales do Parque Nacional da Serra de Ibitipoca nos empurravam para cima.

Além de subidas intermináveis, a topografia do caminho era um desafio para qualquer um. Guardada as devidas proporções, era como “Onde os fracos não têm vez”, filme magistral dos irmãos Cohen (Joe e Ethan), de 2007, vencedor do Oscar de melhor filme em 2008, com um Javier Bardem aterrador. O caminho, com raras exceções, era pontuado pelas placas e formações geológicas dos montes que percorríamos, tornando a caminhada cada vez mais penosa.

No meio do caminho, uma senhora, esbaforida e suando em bicas, descia com um guia. Não suportou a subida, desistindo de alcançar a Janela do Céu. O que nos levou a pensar que poderíamos ter o mesmo fim.

Mas o prazer de voltar a fazer parte do mundo real, vendo jovens, em sua maioria galgando cada metro da longa trilha, nos empurrava cada vez mais para cima, para atingir os mais de 1.700 metros de altitude, a chamada Lombada, que nos levaria, depois de mais algumas horas de caminhada, até a famosa Janela.

Chegando, exaustos, no almejado ponto que achávamos inatingível ainda quando mal tínhamos caminhado quatro quilômetros,  uma multidão se aglomerava para entrar no pequeno espaço que dava acesso a um pequeno lago. Todos sem máscara, se apinhando numa fila. Nos invadiu uma certa decepção, mas a beleza do lugar, onde permanecemos por bem pouco tempo de máscara – parecíamos uns extraterrestres no meio daquele povo todo –  valeu a longa subida. Era sábado (4), véspera do feriado.

Tempos atrás, uma jovem despencou da Janela, caindo de uma altura de 35 metros, vale abaixo. Por uma dessas razões desconhecidas, sobreviveu, com um braço quebrado e muitas escoriações. Foi salva pelo resgate, que veio de Juiz de Fora, a 100 quilômetros de distância, em uma operação que mobilizou bombeiros e policiais especializados em rapel, escalada. Um helicóptero foi usado no complexo resgate da jovem.

Ingenuamente, pensei: se subimos e caminhamos tanto, pouco mais de 6,7 quilômetros, agora é hora da descida, sem grandes dificuldades. Ledo engano. Depois de uma pequena subida para sair da Janela do Céu, surgiu uma placa: distância da volta: 6.470 quilômetros. Nos olhamos e fizemos uma pequena curva. O que vimos, com alturas das mais diversas, foi aterrador: uma subida, com degraus feitos de rochas, com o chão todo de placas e pedras enormes, como se uma erupção vulcânica tivesse se abatido sobre o lugar.

Não vamos conseguir. As pernas doíam. O sol não dava nenhuma trégua. Nenhuma nuvem no céu. E se chamássemos um resgate? Não, vamos continuar.

Depois de subir a terrível encosta de degraus, chegamos a um lugar plano, por onde pudemos caminhar alguns poucos quilômetros. Um grupo, à frente, encontra uma cobra coral bem perto por onde as pessoas caminhavam, entrincheirada no mato ressequido pela seca inclemente. O Parque que recebe anualmente cerca de 100 mil pessoas, havia sofrido um incêndio, recentemente, que devastou parte de sua fauna e flora.

Um pensamento insano nos assolou pela exaustão que estávamos: é a nossa chance. Quem sabe a cobra nos pica e a emergência vem nos buscar de helicóptero?. Mas se demorar, a morte é certa: em meia hora o veneno pode matar uma pessoa. Passou até pela cabeça se não seria uma cobra coral falsa. Mas não daria para arriscar. Como saber? O jeito era continuar.

Também corríamos contra o tempo. Estávamos a mais de seis quilômetros do estacionamento onde havíamos deixado o carro. O parque fechava às 18 horas e já estávamos perto das 15 horas, sem saber o que nos aguardava pela frente pois, ao contrário do que supunha, subidas enormes e descidas íngremes, sempre apareciam à nossa frente.

No meio do caminho uma jovem, com não mais 22 anos, sentada no chão do caminho, havia torcido o pé pelos desníveis da trilha.. Se ela, com essa idade, torceu o pé, as nossas chances de, não só torcer, mas quebrar o pé, eram infinitamente maiores. Poderia ser uma estratégia para acionar o resgate  Mas continuamos.

Na volta a paisagem era ainda mais bonita. Três riachos nos salvaram do calor inclemente. Deu para nos refrescar ao longo do caminho, com água gélida recolhida desses riachos. O impressionante era que a seca estava tão braba, que jogávamos água na cabeça, no corpo, e um minuto depois já estávamos praticamente secos.

Vencemos o desafio, chegando semimortos no estacionamento onde o carro havia ficado. No dia seguinte, as dores nas pernas, nos braços – para a trilha utilizamos bastões de caminhada, sem os quais não conseguiríamos completar o circuito –, estavam enraizadas.

No domingo, após a caminhada, ao entrarmos em uma charmosa lojinha onde o pão de canela, tradicional por lá, era a atração, a dona me disse que por 20 anos foi guia turística no Parque. Que seus joelhos ficaram imprestáveis pela quantidade de vezes que subiu rumo à Janela do Céu que, para ela, é a Janela do Inferno.

Ela carregou nas tintas. A trilha é árdua, mas vale pela paisagem e pelo desafio. E pelos efeitos que a longa caminhada traz para mente, tão machucada nesses 18 meses de pandemia.

E foi nesse lugar que a dona do Cabra da Peste, um misto de restaurante e bar badalado na cidade, resolveu se casar. Ela conta que fez a trilha logo cedo – o Parque abre às 7 da manhã –, carregando na mochila o vestido de noiva. Seu atual marido levou o terno e foram acompanhados por um fotógrafo. O casamento viralizou nas redes sociais. O Cabra da Peste é famoso por suas comidas nordestinas e seu famoso pelo torresmo de rolo – um torresmo feito com a barriga do porco, temperada com sal, pimenta do reino  e cachaça , enrolada e marrada com barbante, formando um rolo. Fica por duas horas no forno e depois e jogada no óleo aquente para deixar pururuca. É só para os fortes.

Após descansar no domingo, segunda encaramos um segundo desafio: o Circuito das Águas. Bem mais tranquilo – todo o percurso tem cerca de 5 quilômetros –, e é cercado por rios e cachoeiras, que nessa época estavam minguadas pela seca que assola o país e desencadeou uma grave crise hídrica. A trilha, bem mais suave, tem pedaços sobre as rochas, com alguma subidas e descidas não pouco triviais.

No dia 6, à noite, como despedida, conseguimos ir ao Oliva Bistrô. Uma grata surpresa, pela qualidade da comida e os cuidados com a pandemia: não mais que três mesas, com hora marcada. E, depois de muitos anos, conseguimos ver estrelas no céu, na mesa externa onde nos sentamos. Uma imensidão de pontos brilhantes colados no céu azul escuro.

No fim, valeu cada centímetro andado. Voltamos ao Rio com a alma renovada. É como se a mente, de repente, se abrisse depois de tanto tempo engaiolada.

Esquecemos, por algumas horas, os graves problemas que afligem o país: a inflação, o desemprego, a crise hídrica e fiscal, o desmonte da cultura, da educação, o aumento da desigualdade, da fome, da pandemia.

O  retorno nos jogou de volta a esse turbilhão do dia a dia.

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Ontem, quinta-feira (16), uma amiga jornalista, mãe de uma menina chegando aos dois anos, me dizia dos efeitos da pandemia sobre o desenvolvimento da sua filha. Sem convívio externo, sua fala e desenvolvimento motor começaram a evoluir de forma mais lenta. A irritabilidade aumentou. A decisão, apesar de um aperto no coração, foi colocá-la em uma escolinha para que suas funções cognitivas não sejam prejudicadas.

Fico imaginando as milhares de crianças sem condições financeiras de terem a mesma atenção. E os legados que isso trará para essa geração de crianças.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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