Em Foco

Vendo a vida passar pela janela

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Janela Indiscreta, o filme de Hitchcock, de 1954, com James Stewart e Grace Kelly, onde um jornalista, com a perna quebrada, observa, de binóculos, seus vizinhos, já que, numa cadeira de rodas, tem sérias limitações de locomoção. O filme cresce de emoção com o descobrimento de um possível assassinato no apartamento em frente. Isolado, o observador de Hitchcock pouco podia fazer.

Guardadas as devidas proporções com a obra do magistral Hitchcok, com a explosão de casos e mortes pela COVID-19, fiquei enfurnado, como muitos, no apartamento, sem colocar o nariz para fora durante mais de um mês, semelhante ao personagem de Hitchcock, mesmo sem limitações para se locomover, mas num gesto de autodefesa na tentativa de escapar do inimigo invisível, o vírus.  Antes, com a situação mais amena, arriscava algumas caminhadas pelo Aterro do Flamengo, no Rio, com máscara, e em horários com pouca movimentação.

Nessas rápidas caminhadas, desviando das pessoas como se fossem contagiosas – o que me causava profunda angústia -, geralmente nos finais de semana, ainda via pessoas que se tornaram meio folclóricas no bairro. O senhor Charles, com a sua elegante gravata borboleta, com um avental marrom e camisa branca engomada, empurrando um carrinho entulhado de temperos, ralos para pias, dos mais diversos tamanhos, e uma infinidade de coisas que me remetia a uma viagem que fiz à China, em 2015, quando vi uma pequena moto carregando dezenas de sacos, construindo uma montanha perto dos 10 metros de altura que, desafiando a lei da gravidade, mantinha-se empilhada, sem se mover.

Não sei o que ocorreu com o senhor Charles. Sai mais algumas vezes, mas não o encontrei pelas ruas. Já com certa idade, teria sido mais uma vítima das estatísticas de mortos pela COVID-19? João da Rosca, um negro esguio, baixo, com uma voz aguda, chamava as pessoas utilizando um linguajar engraçado, às vezes beirando ao erotismo, para vender suas roscas que saiam rapidamente. Era um marqueteiro por excelência. Também desapareceu das ruas do bairro. Mesmo em meu total isolamento, não escuto mais a sua voz aguda e penetrante. Mais um que teria sucumbido?

“Freguesa, uma caixa com 30 ovos por R$ 10,00. Aproveite. É fresquinho. É da granja”. Em uma Kombi mambembe, geralmente estacionada em uma das entradas do Metrô do Flamengo, ou circulando pouco, já que as condições mecânicas eram precárias, uma gravação, de péssima qualidade, repetia exaustivamente a oferta de cartelas de três dezenas de ovos. Há muito tempo não escuto mais o som estridente e cheio de microfonia daquela Kombi.

 O preço da dúzia de ovos foi às alturas, como grande parte dos alimentos puxando a inflação para cima, levando o Banco Central a aumentar a taxa de juros em 0,75 ponto, depois de sete meses com a Selic (a taxa básica de juros) estacionada em 2% ao ano. É possível que, na próxima reunião do COPOM, o Comitê de Política Monetária do BC, uma nova alta ocorra. E, como se sabe, a inflação acaba penalizando os mais pobres.

A disparada dos alimentos
Valores acumulados em 12 meses


Fonte: IBGE.

É estranha a sensação de ver a vida passando pela janela e pelos sons ao redor vindos da rua, dos apartamentos de meu prédio, do choro das crianças, das brigas que, de repente, explodem em um dos apartamentos, do estresse a que as pessoas estão expostas, superando seus limites, do martelar e das serras contínuas das obras que não param. Das mães, com filhos pequenos, sem escola, encarceradas em apartamentos, quadruplicando sua jornada de trabalho.

O isolamento nos desconecta do que acontece fora das paredes do apartamento, a não ser pelos sons e, algumas vezes, imagens de vultos em outras janelas.  A corda já esticou além de sua capacidade.

Desde a semana passada, como no último Em Foco, e com mais intensidade nesta, as pressões sobre o governo para tomar medidas concretas de combate à pandemia aumentaram. O Legislativo, até então bastante omisso em relação à questão, começou a elevar o tom através do presidente da Câmara Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.

Sem entrar no mérito se há ou não viés político – na verdade, não há como dissociar a política da economia –, um grupo de economistas e empresários lançou, semana passada, uma Carta Aberta, “onde o denominador comum é o desespero diante da inércia do governo”, conforme diz Pérsio Arida, um dos signatários, alertando que o quadro é ainda mais alarmante com o colapso do sistema de saúde – onde faltam médicos, respiradouros, medicamentos, leitos.

A Carta, ao propor uma série de medidas para controlar a pandemia, que vão de vacinação em massa a lockdown, mostra que o ritmo de vacinação no país é insuficiente para atender os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no primeiro semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022. ”

Enquanto isso, a economia derrete, a taxa de desemprego da ordem de 14% é a mais alta da série histórica, “e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 2020 de 5,5 milhões de pessoas”, alerta a Carta.

Depois de um ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, veio a público dizer que a vacinação é o melhor caminho e bem mais barato que o auxílio emergencial concedido no ano passado, que custou aos cofres públicos R$ 327 bilhões, enquanto os recursos federais para compra de vacinas são de R$ 22 bilhões. O que todo mundo já sabia há muito tempo. Hoje somos o epicentro mundial da COVID-19, proibidos de entrar em quase todos os países do planeta. Até ontem, dia 25, o país vacinou 8,75% da população. Os que haviam recebido as duas doses da vacina eram somente 2,81% da população.

Vivemos uma catástrofe sanitária e econômica nunca vista. Não compramos vacinas quando quase todo o planeta corria para fechar contratos. O governo continua na queda de braço com os governadores, entrando no Supremo Tribunal Federal (STF) contra governadores que buscam fazer restrições à locomoção, ação que foi derrubada esta semana pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Com a pressão aumentando, na última terça-feira, dia 23, o presidente Bolsonaro, depois de adiar por três ou quatro vezes, fez um pronunciamento à Nação, em rede nacional, procurando descrever o que o governo tem feito para combater o maldito vírus, afirmando, numa mudança aparente de rumo, “que 2021 será o ano de vacinação dos brasileiros”. Nem uma palavra sobre cuidados básicos, como uso de máscaras, evitar aglomerações, isolamento, ter um plano concreto de combate à pandemia, conclamando a sociedade para se unir frente ao vírus. O que iria contra o que tem defendido e é repetido por boa parte de sua base de apoio.

No dia seguinte, em mais uma estratégia política, criou um Comitê anti-Covid, integrado pelos chefes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário onde repetiu, por diversas vezes, “a vida em primeiro lugar”, não deixando, no entanto, de mencionar o velho jargão: não se deve deixar de lado tratamentos preventivos (aqueles sem comprovação científica). O Comitê não fixou datas para a apresentação de algum plano nacional, e foi visto com certo ceticismo quanto à sua eficácia, por políticos, empresários e demais segmentos da sociedade.

Para alguns parlamentares, a união de forças, com a formulação de um plano estratégico e emergencial, seria a última chance do presidente. Se nada fosse feito, alertavam, a pressão aumentaria para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para investigar as ações do governo. Como disse o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em live do Correio Braziliense, “o Brasil tem de decidir entre a união e o caos”. E o presidente da Câmara, Arthur Lira, afirmou que “os remédios políticos” no Congresso contra a “espiral de erros” no combate à pandemia são “conhecidos, amargos” e, alguns, “fatais”, numa possível alusão à CPI, ou até ao início de um processo de impeachment.

Também ganhou destaque na imprensa as pressões para que os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sejam trocados, já que com uma diplomacia errática e uma política ambiental na contramão do mundo criaram um ambiente hostil ao país no exterior. É o Centrão colocando as suas garras para fora.

Mas, procurando ser um pouco otimista, é verdade que a quantidade de vacinas vai começar a aumentar e, com isso, acelerar o processo de imunização. Mas essa rapidez vai depender da chegada de insumos, das promessas de entrega de vacinas por parte dos laboratórios, num momento em que a demanda mundial cresceu exponencialmente.

No mesmo dia do pronunciamento do presidente, o Ministério da Saúde reduziu, pela quinta vez, a quantidade de vacinas que havia prometido entregar em abril: caiu de 57,1 para 47,3 milhões. A Fiocruz que deveria entregar 30 milhões de doses, refez as contas e baixou para entre 18 e 21,1 milhões de doses. Também foi retirada do cronograma a entrega de 1 milhão de vacinas da Pifzer/Biontech que deveria chegar este mês.

Vacinação contra a COVID-19
(países selecionados)


Fonte: Johns Hopkins e Our World in Data.
Nota: No caso do Brasil também foi utilizada como fonte o Consórcio de Veículos de Imprensa (Dados do Brasil de 25/3).

Mas, mesmo que haja uma aceleração na vacinação – o que a maioria da população deseja, como mostrou pesquisa Datafolha, onde 84% de quem foi ouvido quer se vacinar –, o estrago já foi feito. Dia 25 fechamos com uma média móvel de 2.276 mortos, número que tende a aumentar ou se manter em patamares elevados ainda por um tempo. Há milhares de pessoas com sequelas, famílias destruídas e a economia sem luz no fim do túnel. Desde o começo da pandemia 303.727 pessoas morreram pela COVID-19 no Brasil, o segundo país com o maior número de mortos, atrás só dos Estados Unidos. Só dia 25, ontem, foram registrados 97.586 novos casos, maior número já registrado, com 2.639 mortes.

Na última quarta-feira, dia 24, Caroline, uma jovem e simpática enfermeira do SUS que atende num posto de Piratininga, Niterói, para onde me refugiei com Silvia, minha mulher, depois de meses no apartamento do Rio, me aplicou a primeira dose da Coronavac. Antes, ao passar meus dados para preparação da ficha de vacinação, Carlos Henrique, um jovem enfermeiro, em tom desolado e com voz meio embargada, me dizia. “Na noite passada, quatro pessoas morreram no hospital público em que trabalho. Três jovens. Um não tinha mais que trinta anos. Entrou no hospital pela manhã e morreu à tarde. Não sei o que acontece. Parece que ninguém está acreditando na catástrofe que estamos enfrentando. Nós estamos no nosso limite. Peço a você e a sua esposa que se cuidem.”

Ao entrar na sala e receber a vacina da Caroline, ainda impactado pelo quase grito de socorro de Carlos, dois sentimentos me invadiram. O primeiro, um certo alívio e agradecimento aos incansáveis trabalhadores do SUS e a todos que lutaram, e lutam, pela vacinação, uso de máscara, isolamento social, não aglomeração, pela ciência. O segundo, de uma angústia e aperto no coração ao saber que, quando tomava a primeira dose, muitas pessoas estavam morrendo ou esperando na fila por atendimento médico. E que muitos outros irão morrer. Uma aflição e desalento que ficará na memória.

O choro de minha neta Sofia e de minhas filhas ao receber a notícia de que, finalmente, havia sido vacinado, é um espelho doloroso do limite e da carga emocional que todos estão carregando. Mas, como sempre digo a elas: vamos celebrar a vida que, em breve, o período das trevas chegará ao fim.   

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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