Em Foco

Amarga incerteza

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

“Não me lembro. Não conheço. Nunca defendi isso. Me pauto pela ciência. Desconheço essa informação. Não estava presente. Sou muito ruim para lembrar datas. Não participei”. Poderia ficar aqui desfiando um rosário de frases e afirmações de pessoas que estão depondo na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que busca avaliar responsabilidades do governo federal no combate à pandemia e dos governadores em relação aos possíveis desvios de verbas públicas.

É importante ressaltar, no entanto, que, em raras ocasiões ocorreram relevantes depoimentos que levaram uma luz sobre a avalanche de informações desencontradas sobre a pandemia.

Mas, no geral, a maioria dos depoimentos vão para o mesmo caminho: desconhecimento de tudo ou nenhuma participação ativa. Ao ver os questionamentos e as respostas, sempre vou sendo levado para os livros de Franz Kafka, onde há um labirinto que o personagem central percorre sem nunca encontrar uma saída, como mostrado em suas obras póstumas “O processo” e o “O castelo”. É como se diz no ditado popular: fica-se correndo atrás do rabo.

Kafka, que nasceu em Praga, então Império austro-húngaro, morreu aos 40 anos e pediu para que suas obras inacabadas fossem queimadas. Felizmente, seu amigo Max Brod, não atendeu seu último pedido.

Enquanto a CPI prossegue, a pandemia segue célere, sem tréguas, mantendo a incerteza sobre o futuro próximo. Nosso vizinho Peru revisou o número de mortos que, no último domingo (30), era de menos de 70 mil. Na segunda (31) pulou para 180,7 mil, tornando-se o país com a pior taxa do mundo de óbitos em relação à população, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. São mais de 5000 vítimas pela Covid-19 por milhão de habitantes. A subnotificação de óbitos já havia sido antecipada no Em Foco da semana passada, conforme relato do jornalista Fernando Chevarria León, que sinalizava mais de 170 mil mortos se fosse consultado o cadastro de valores excedentes do Sistema Nacional de Mortes (Sinadef) peruano.

Há poucas dúvidas de que há subnotificação de mortes em várias partes do mundo. O México já havia reavaliado o número de óbitos há cerca de um mês. Na Índia, dos pouco mais de 340 mil mortos, há estimativas de que, na verdade, os óbitos já teriam ultrapassado a casa de 1 milhão. No caso da Índia, no entanto, depois de uma onda avassaladora que começou em meados de março, as curvas de infecção e mortes parecem estar se estabilizando, com tendência de queda.

Por aqui, continuamos em um patamar elevado de casos e mortes, embora maio tenha fechado com menor número de óbitos do que em março e abril. Mas os cinco primeiros meses deste ano foram sombrios para o Brasil: 268,3 mil pessoas morreram pela pandemia: 57,9% de todos os 463 mil óbitos desde que o mundo virou de pernas para o ar com a Covid-19. Com isso, ultrapassamos os Estados Unidos no número absoluto de mortes acumuladas até maio deste ano. Mas o sinal de alerta continua soando, já que na maioria das capitais e cidades o nível de ocupação nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs.), permanece elevado. Na última quarta-feira (2), o número de novos casos no país voltou a dar um salto, chegando a 95.601.

Mortes no Brasil

 

Mortes Covid-19 – comparativo Brasil x Estados Unidos
Dados acumulados


Fontes: Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde e Universidade Johns Hopkins.

Um interessante trabalho de Daniel Leichsenring, economista-chefe da Verde Asset Management, levanta uma questão importante: embora haja falta de vacinas e atraso na contratação de imunizantes, os critérios estabelecidos para a vacinação da população estão atrasando o ritmo de imunização. No mês passado, embora a distribuição de imunizantes tenha batido recorde, houve uma redução de 4,1 milhões de vacinas aplicadas, uma queda de 16% em relação a abril, segundo o consórcio de veículos de imprensa.  A média diária de vacinação no mês passado foi de 662 mil doses por dia, ante as 821 do mês anterior. Em grande parte, a redução deveu-se ao menor número de aplicações da segunda dose que encolheu de 10,5 milhões, em abril, para 6,5 milhões, em maio.

Mas há outras razões. Entre elas a interrupção do processo de vacinação por idade para a imunização por grupos com comorbidade, importante, mas falha, já que não se sabe exatamente o número de pessoas – deve haver superestimação -, além haver grandes possibilidades de fraudes, além de falta de uma estratégia, como uma campanha nacional, incentivando a imunização, etc.

Para Leichsenring, “entendemos que a vacinação por comorbidade é muito falha, precisa ser ajustada, e deve-se voltar a vacinar pelo critério de idade o mais rápido possível, mesmo mantendo os portadores com comorbidade como prioritários”.

Na semana passada, o Ministério da Saúde decidiu flexibilizar a fila de vacinação, depois que algumas localidades afirmarem que não tinham mais quem vacinar, pois já haviam atingido todo o grupo prioritário determinado pelo Programa Nacional de Imunizações (PIN). Agora, quem já avançou na vacinação dos grupos de risco, poderá voltar a atender a outra fila, por idade.

O gráfico abaixo mostra o descolamento entre a média de vacinação diária e os estoques de vacinas, que tem formado uma boca de jacaré, como os economistas gostam de falar.

Estoque de vacinas e vacinação diária


Fonte: Ministério da Saúde. Elaboração própria: Daniel Leichsenring.

Mas há coisas boas acontecendo. Como já mencionei em outros Em Foco, o avanço da ciência para combater a pandemia, com a criação de vacinas em um tempo recorde, foi espantoso. Mas a corrida para uma maior eficiência de imunizantes não para. Pesquisa feita pelos cientistas da Duke University, nos Estados Unidos, sinaliza que uma vacina universal contra todos os tipos de coronavirus pode estar próxima. A primeira fase dos testes em macacos foi concluída, com “excelentes resultados”, segundo dados preliminares publicados na plataforma on-line da revista científica Nature. O imunizante ainda precisa passar por duas etapas antes de chegar ao mercado: aplicação em pequenos grupos de humanos e testes em larga escala.

No Em Foco de 16 de abril, já havia mencionado outro trabalho dos pesquisadores Jacob Glanvill e Sarah Ives, da empresa Distributed Bio, de São Francisco, nos Estados Unidos, que também tem trabalhado no desenvolvimento de uma vacina universal, já batizada de Centivax que, a princípio, poderia estar pronta em 2025.

Outra notícia animadora: essa semana, saíram os dados do acompanhamento da imunização em massa feita na cidade de Serrana, no interior de São Paulo, pelo Instituto Butantan, onde a população foi vacinada pela Coronavac.

A imunização de toda a população adulta, fez com que os casos sintomáticos da Covid-19 caíssem 80%, as internações 86% e as mortes 95%. Outra conclusão importante: enquanto Serrana, com 10 mil habitantes que trabalham na cidade vizinha, Ribeirão Preto, teve essas drásticas reduções, a população de Ribeirão e cidades vizinhas vem apresentando alta de casos e mortes. Ou seja: além da queda das infecções, os moradores que transitam em outras cidades não trouxeram um incremento relevante de casos. Com 75% da população vacinada, a pandemia é controlada, é a conclusão do estudo.

O governo do estado de São Paulo informou que, desde que haja vacina, toda a população adulta deverá estar vacinada até o final de outubro. E a Fiocruz anunciou que, a partir de outubro, começa a produzir a AstraZeneca, com previsão de uma produção mensal de 15 milhões de doses.

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) começa a abrigar um centro de tratamento para nos sobreviventes com sequelas da Covid-19. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo menos 10% de quem teve a doença fica com sequelas. No Rio, estima-se que cerca de 35 mil sobreviventes da Covid-19 tenham algum tipo de sequela grave, necessitando de atendimento.

O centro, que funcionará na antiga Escola Municipal República Argentina, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, terá dimensão nacional e fará atendimento através do SUS, começando com 50 atendimentos por dia, podendo chegar a 300 com o passar do tempo. Também está no horizonte do projeto, treinamento de profissionais de saúde de outras unidades para atendimento aos afetados pela pandemia.

A esperança e torcida são grandes.

Na última terça feira (1), a imprensa perdeu um de seus mais brilhantes jornalistas. Aos 67 anos, depois de lutar por 49 dias contra a COVID-19, Ribamar Oliveira, repórter especial e colunista do Valor Econômico, partiu. Riba, como era carinhosamente chamado pela legião de amigos que amealhou durante seus mais de 40 anos de profissão, deixa um vazio enorme. Para a profissão e seus amigos.

Fique em paz, amigo.

 

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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