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Da letargia à mudança do xadrez político

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

O marasmo em que estávamos mergulhados, com a oposição acuada, sem ações concretas, a não ser alguns discursos inflamados e postagens nas redes sociais, virou de ponta cabeça com a decisão do ministro Edson Fachin de tornar o ex-presidente Lula elegível para as próximas eleições presidenciais, embora a decisão ainda tenha que ser referendada pelos 11 membros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em seu primeiro pronunciamento, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, de São Bernardo do Campo, em São Paulo, berço do nascimento do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula jogou lenha na fogueira. Defendeu a vacinação em massa da população, o isolamento social, o uso de máscara, a ciência, numa alusão a medicamentos não comprovados cientificamente no tratamento do COVID-19, o amparo aos menos favorecidos, a destinação de recursos para as Forças Armadas ao invés de armar a população, prioridade defendida pelo presidente. E acenou com a construção de uma frente ampla que extrapole os muros da esquerda, aproximando-se de setores do centro e centro-direita. Wellinton Dias (PT), governador do Piauí, já foi indicado por Lula para iniciar uma aproximação com o PSDB e demais partidos políticos

Também ganha força a intenção de Lula, se for candidato – o que já sinalizou em entrevista a Cristiane Amanpour, da CNN, “desde que seja convidado e esteja bem de saúde” -, formar um governo liberal, à semelhança de seu primeiro mandato, o que agradaria o mercado, reduzindo a ojeriza hoje latente em vários segmentos da sociedade quando se pronuncia o nome do PT.

Cerca de três horas depois do discurso – que em dois dias gerou 2,54 milhões de interações no Twitter e 159 mil no Facebook segundo levantamento da Diretoria de Análises Políticas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) –, o presidente Bolsonaro, usando máscara, assinou uma Medida Provisória flexibilizando a compra de vacinas, inclusive pela iniciativa privada. Logo depois, em uma live, colocou um globo terrestre na mesa, possivelmente numa alusão de que a terra é redonda, e não plana como defendem muitos bolsonaristas. E nos estertores no cargo, como ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello anunciou a compra de 138 milhões de doses de vacinas da Pfizer e da Janssen que serão, em sistema escalonado, entregues até o final deste ano.

Se havia alguma esperança de uma mudança de postura, ela logo caiu por terra. Na mesma live o presidente continuou atacando as medidas de isolamento social, não dando sinais de que vai largar mão do discurso de que tratamentos precoces, sem comprovação científica, devem ser utilizados, embora já esteja sendo convencido a se vacinar, o que seria usado como um exemplo a todos os brasileiros. Indicada pelo Centrão para substituir Eduardo Pazuello, a médica Ludhmila Hajjar, do Instituto do Coração e do Incor, de São Paulo, que defende medidas de isolamento, uso de máscara e a vacinação, depois de conversar por três horas com o presidente no último domingo, declinou do convite na segunda. Em entrevista à Globonews, disse que não “houve convergência” técnica entre ela e o governo. O escolhido foi Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, próximo à família Bolsonaro, cuja nomeação depende da publicação no Diário Oficial.

Queiroga que já havia se posicionado, anteriormente, como defensor da vacina e do isolamento social, já se pronunciou contra o lockdown e sinalizou que fica a critério médico o uso de medicamentos no tratamento do novo coronavírus.

E o desalento aumentou com o seu primeiro pronunciamento à imprensa, quando disse que a política de saúde durante a pandemia do coronavirus é “do governo Bolsonaro”, e não do ministro da Saúde. E “que o ministro Pazuello tem trabalhado arduamente para melhorar as condições sanitárias do Brasil e eu fui convocado pelo presidente Bolsonaro para dar continuidade a esse trabalho”. 

Parece que entramos na segunda fase de “ um manda e outro obedece”, como disse Pazuello, tirado do cargo pela ineficiência no combate à pandemia, em função da pressão que o governo vem sofrendo. Ressalte-se que a escolha de Queiroga não foi bem recebida pelo Centrão, base de apoio do presidente que havia indicado Ludhmila.

Natália Pasternack, microbiologista e presidente do Instituto Questão da Ciência, em entrevista ao Blog da Conjuntura Econômica, é cética quanto a uma mudança de postura na questão da pandemia. “Trocamos seis por meia dúzia (...) Se a desculpa era que precisávamos de um médico, aí está. Agora coloquei um técnico (referindo-se a Bolsonaro) e ele fará o que eu mandar” (...). “Então não vejo nenhuma perspectiva de mudança, a não ser de se empenhar mais para comprar vacinas, mas isso o próprio Eduardo Pazuello já estava tentando fazer.”

Com a pandemia correndo solta, a decisão do ministro Fachin mexeu com o mundo político. A convenção do PSDB, anteriormente marcada para dezembro, foi puxada para outubro. O governador de São Paulo, João Dória, até então potencial candidato à presidência, foi a público afirmar que, conforme o andar da carruagem, pode abrir mão de sua candidatura, concorrendo à reeleição ao governo de São Paulo.

O deputado federal, Aécio Neves, que estava mergulhado no ostracismo há cerca de três anos, agora eleito presidente da Comissão de Relação Exteriores da Câmara, deixou no ar a possibilidade de que o PSDB pode não ter candidato à presidência, numa alusão a uma provável formação de uma frente ampla que escolha um candidato viável para enfrentar Bolsonaro em 2022.

Mas há obstáculos. Guilherme Boulos, do PSOL, candidato derrotado à prefeitura de São Paulo, que teve uma expressiva votação no segundo turno nas eleições para a prefeitura de São Paulo, com mais de 2,1 milhões de votos, despontando como uma nova liderança da esquerda, veio a público defender uma união das esquerdas, como forma de fazer frente ao atual presidente. Há, no entanto, alguns movimentos contrários a isso, defendendo uma união ampla de esquerda e centro-direita, como já se pronunciou o governador Flávio Dino (PCdoB) e outras lideranças.

Mas parece estar nesse campo da esquerda, como da direita não-bolsonarista, um travamento para uma união. Para Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do CEBRAP, em entrevista ao Blog da Conjuntura antes da decisão de Fachin, “ a esquerda resolveu adotar uma tática de recall da eleição de 2018. As candidaturas já estão postas, com Ciro Gomes (PDT) e, possivelmente, Lula (PT), e são inconciliáveis por várias razões. Até agora, a esquerda está dividida de forma inconciliável. E na direita não-bolsonarista parece não haver recall de candidatos, então é preciso encontrar novos nomes, o que implica construir um campo que seja alternativo à extrema direita bolsonarista”.

O desgaste do governo ante a pandemia, com a atividade econômica nas cordas e a volta da inflação, tem aumentado. Pesquisa Datafolha divulgada na quarta-feira (10/3), mostrou que 54% dos entrevistados consideram a atuação de Bolsonaro ruim ou péssima – o maior nível registrado na pesquisa –, enquanto 43% o culpam pela crise no combate à pandemia. A aprovação de quem acha a gestão do governo ótima e boa na pandemia passou de 26% para 22%, enquanto quem acha regular saiu de 25% para 24%. Já a avaliação do desempenho geral do presidente se mantém num patamar de 30% entre quem acredita ser ótima ou boa sua gestão. Vinte e quatro por cento declararam ser regular, e 44% ruim e péssima.

Em outra pesquisa, divulgada dia 17, o Datafolha aponta que 56% das pessoas ouvidas na pesquisa consideram o presidente Bolsonaro incapaz de governar o país, ante os 50% da pesquisa anterior, realizada em janeiro, mas 50% são contra um processo de impeachment, enquanto 46% são a favor.

Desempenho de Bolsonaro na pandemia


Fonte: Instituto Datafolha.

Há uma crescente pressão de entidades internacionais, comunidade científica, investidores e alguns aliados do governo para que a pandemia seja olhada como uma ameaça real à recuperação econômica e que buscam evitar um isolamento externo ainda maior do País. Hoje, o Brasil é o país que tem o maior número de contaminações e mortes diárias no mundo, já tendo superado os Estados Unidos. Ou seja: estamos na vanguarda do atraso, uma citação usada pelo saudoso Regis Bonelli, pesquisador do FGV IBRE, que nos deixou em dezembro de 2017, aos 74 anos.

É importante ressaltar o papel que desempenha um governo na pandemia. Pegando o exemplo dos Estados Unidos, após a posse de Joe Biden, que iniciou um processo maciço de vacinação – cerca de 3 milhões de americanos estão sendo vacinados diariamente, com o presidente incentivando as pessoas a se vacinarem. Com isso, houve uma acentuada queda de novos casos e mortes (ver gráficos). É evidente que, para isso, além de uma postura política, é necessário ter vacina. E os Estados Unidos, desde Donald Trump, apesar do discurso negacionista, se preparou para isso. O que não fizemos.

Mortes e novos casos diários
(Mortes)


Fonte: Consórcio de Veículos de Imprensa e Our World in Data.

 

(Novos casos)


Fonte: Consórcio de Veículos de Imprensa e Our World in Data.

Nesse imbróglio em que estamos enfiados, o que joga a favor do presidente é que, apesar do desgaste, as eleições ainda estão distantes. Se a maioria da população for vacinada e a atividade econômica começar a deslanchar mais fortemente em 2022, com a máquina do governo nas mãos, Bolsonaro pode reverter o quadro, ampliando sua base de apoio.

Maria Hermínia Tavares, cientista política e pesquisadora do CEBRAP, em entrevista ao Blog da Conjuntura, acredita que apesar da agenda de costumes, de comportamento, de valores, defendida pelo governo Bolsonaro – que não teve grandes avanços como o presidente esperava – “não temos evidência de que o voto tenha deixado de ser determinado pelo bolso do brasileiro, como ocorre em todos os lugares do mundo”. Com a atividade econômica não conseguindo decolar, com o avanço da pandemia, e o avanço da inflação – o Banco Central subiu em 0,75% a taxa de juros ontem (17), sinalizando nova alta na próxima reunião –, a recuperação, se vier no segundo semestre, ainda poderá ser tímida. E 2022 ainda é uma grande incógnita. Mas tudo vai depender da capacidade do País em acelerar, rapidamente, a vacinação. Do contrário, qualquer debate ou discussão perde sentido.

Mas isso só o tempo dirá.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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