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A pandemia e a pressão sobre o governo

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Minhas netas, Sofia e Julia, mergulharam há cerca de um mês, uma vez mais, na série do Harry Porter e seus amigos Hermione e Ron, na cruzada contra o sombrio inimigo “Você-sabe-quem”, numa alusão a Lord Voldemort, aquele que não deve ser nomeado, sempre carregando seu infinito saco de maldades. Laura, a neta mais nova, geralmente deixada de lado pelas duas devido à diferença de idade, às vezes engrossava a pequena plateia.

Nessa metáfora, infelizmente, não há varinha mágica, poções ou outros ensinamentos vindos de Hogwarts, a escola de magia, para enfrentar o inimigo, como os de Harry Porter e seus amigos. O COVID-19 ganha músculos ante a apatia do governo e seus ferrenhos seguidores, ao defenderem que a pandemia é uma fatalidade. Incompreensível, também, é a posição do Legislativo, especialmente da Câmara, que passou quase uma semana discutindo a PEC da Imunidade parlamentar, com a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), com a pandemia grassando pelo País. E também dos demais poderes, apáticos e paralisados, sem ações mais concretas que auxiliem o País a reduzir essas estatísticas sombrias de mortes diárias. Só agora começam a se movimentar.

Em uma aparente mudança de rota, já que a imprevisibilidade do governo é espantosa, na segunda-feira, dia 8, o desaparecido ministro da Economia, Paulo Guedes, veio a público dizer que o governo iria assinar a compra de vacinas da Pfizer. Seriam 14 milhões de doses a serem entregues em junho deste ano, e mais lotes até o final do ano. Em setembro do ano passado, a Pfizer havia feito uma proposta para o fornecimento de 70 milhões de doses, já a partir de dezembro. O governo rejeitou, alegando uma razão que seria de melhor entendimento da população: a de que o laboratório não se responsabilizava pelos efeitos colaterais da vacina. Ora, nenhum laboratório se responsabiliza pelos efeitos colaterais nem de uma aspirina. Na verdade, conforme noticiado esta semana, o contrato da Pfizer tem várias cláusulas bastante polêmicas, e que não haviam vindo a público. Na última quarta-feira, o presidente, de máscara, sancionou lei que flexibiliza a compra de vacinas, inclusive pela iniciativa privada.

A mudança de postura, que já foi apelidada de Projeto Vacina, está umbilicalmente ligada à queda de popularidade do presidente nas redes sociais e em pesquisas encomendadas pelo governo, aliada à rápida deterioração da atividade econômica. Não há preocupação com as mortes, já que desde o início o discurso tem sido de que a pandemia é uma fatalidade, todo mundo vai morrer um dia, o isolamento é uma bobagem e o uso de máscara é para os fracos. Ainda sem uma decisão definitiva e avaliações mais concretas, a possibilidade do ex-presidente Lula voltar a ser elegível em 2022, é um novo componente nesse xadrez político que não pode ser minimizado.

Na matéria de capa da revista Conjuntura Econômica deste mês, a editora da revista Solange Monteiro faz menção ao o historiador israelense Yuval Harari, autor do best-seller Sapiens – uma breve história da humanidade, que em artigo publicado no mês de fevereiro no Financial Times discorda desse mantra que vem sendo repetido desde que a pandemia surgiu por aqui. Harari mostra que, como descreve Solange, “mesmo com rápidos avanços no campo da ciência, há uma fronteira que esta não conseguiu romper, responsável por conter parte do sucesso no combate ao novo coronavírus: a política. Tomando a mesma comparação com a Peste Negra, quando não se podia culpar os monarcas pelas vidas perdidas, já que o pouco entendimento da doença a colocava dentro da caixa de fatalidades, hoje é possível identificar que o êxito ou fracasso no controle da disseminação do coronavirus deveu-se, também, ao custo social e econômico de cada governo que puderam ou aceitaram pagar. (...) Para Harari, desse lado negativo fazem parte os mandatários que por falta de planejamento, negligência e/ou populismo negacionista – cita Trump e Bolsonaro –, prejudicaram o quadro da pandemia, dificultando as ações de combate contra os vírus em seus países e disseminando contágio para outros países.”

No caso do ex-presidente Trump, citado por Harari, é bom ressaltar, no entanto, que ele incentivou, através do programa Warp Speed, anunciado em 15 de maio do ano passado, a criação de parceiras público-privadas para o desenvolvimento e a produção de vacinas contra o Covid-19, injetando recursos federais, apesar de seu discurso negacionista.

O governo, pressionado por governadores e com o aumento da insatisfação popular pelo tosco combate à pandemia – e com receio de perder o limite mínimo de aprovação de 25% que seria a garantia da ida para o segundo turno nas próximas eleições presidenciais, e barrar qualquer iniciativa de  um possível processo de impeachment, segundo alguns analistas políticos –, iniciou, aos trancos e barrancos, uma corrida de obstáculos em busca de vacinas, embora continue em cabo-de-guerra com os governadores, ameaçando retaliações para quem estiver adotando restrições para conter a escalada do vírus. A última foi cortar os projetos da Lei Rouannet para os Estados que estão indo nessa direção.

Enquanto a corrida de obstáculos começa, continuamos batendo recordes de mortes.  A média móvel nos últimos sete dias encerrada ontem chegou a 1.705. Ontem, à noite, o calendário de vacinação no Rio foi suspenso. Hoje e amanhã estava prevista a vacinação para pessoas até 75 anos. Não há vacina para isso. Outro cronograma deverá ser divulgado, quando chegarem mais doses.

Média móvel de mortes por COVID-19 no Brasil
(Últimos sete dias)

Fonte: Consórcio de Imprensa e Ministério da Saúde.

 

(Série histórica)

Fonte:JHU CSSE COVID-19 Data.

 

Mortes diárias confirmadas de COVID-19
(países selecionados – por milhão de habitantes)

Fonte: CSSE COVID-19 da Universidade Johns Hopkins. Posição em10 de março de 2021.

Mas algumas boas notícias surgem, fruto do esforço individual. Estudos ainda preliminares do Estado de São Paulo mostram que houve uma queda significativa de internações e mortes nas pessoas acima de 90 anos que receberam a vacina. Em Araraquara, interior desse estado, castigada por uma forte onda de contágios e mortes, o lockdowm imposto reduziu para 27% o número de pessoas contaminadas, ante uma taxa superior a 50% antes das medidas restritivas. E os Barômetros Globais da Economia, indicador produzido pelo FGV IBRE, subiram expressivamente em março, refletindo o sucesso das campanhas de vacinação em alguns países, gerando otimismo quanto à possibilidade de se controlar a pandemia dentro de alguns meses.

O que dá um alento e esperança. Junte-se a isso a expectativa de que o Butantan e a Fiocruz comecem a produzir maiores quantidades de vacina já no próximo mês, aumentando a oferta e agilizando a imunização País afora. O que vai depender da chegada de novos lotes de princípio ativo, cada vez mais escasso. E contamos, felizmente, com o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem se desdobrado, superando o limite das forças de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, maqueiros, motoristas, faxineiros. Sem o SUS, o caos já estaria instalado no País, sem dúvida.

Na corrida, atrasada, pela vacina, o Ministério da Saúde divulga que está negociando a compra de vacinas da Pfizer – como Guedes mencionou –, da Moderna, da Johnson. Tudo para o começo do segundo semestre, escalonado até o final do ano. Também informou, no começo do mês, que em março seriam liberados 48 milhões de doses. Esse número já despencou para 30 milhões. Dia 9, o Ministério da Saúde baixou, uma vez mais, a previsão: seriam entre 25 a 28 milhões de doses a serem entregues. Número, revisto uma vez mais, para 22 a 25 milhões na última quarta-feira. A Fiocruz, que deveria fornecer 12 milhões de doses em março, por problemas técnicos, só vai liberar cerca de 3,8 milhões. Ou seja: cada hora brota uma informação, do nada, que faz com que os números apresentados pelo Ministério da Saúde murchem.

Dia 8 último, o mesmo Ministério enviou carta ao embaixador chinês no Brasil, apelando para a liberação de 30 milhões de doses de vacina. Na alegação do pedido: “há risco de a vacinação ser paralisada no Brasil”. Fica difícil entender as expectativas otimistas de que teremos vacinas suficientes no segundo semestre, como mostra o Plano Nacional de Imunização (PNI). Qual a razão que levaria os laboratórios anteciparem entregas ao Brasil de vacinas, em casos de contratos ainda não assinados, ou que serão assinados brevemente, se um grande número de países já firmou acordos e não estão conseguindo antecipar o recebimento de vacinas? Também, as fábricas do Butantan e da Fiocruz não estão prontas para produção em massa da vacina e dos imunizantes. Mas vamos torcer para que sejam benevolentes com o Brasil.

Há um outro problema. Como não se comprou vacina, nem quantidade de imunizantes suficiente, há escassez no mercado. E os preços dispararam. Com os maiores controles impostos depois da Lava Jato, qualquer autoridade reluta, ao máximo, colocar a sua assinatura na compra de vacinas ou imunizantes cujos preços estão nas alturas, já que temem uma possível investigação pelo Tribunal de Contas da União (TCU). E isso tem travado possíveis avanços nas negociações.

Com uma obstinada fixação por medicamentos ou produtos ainda não comprovados cientificamente, como foi o caso da cloroquina, no último sábado, dia 6, uma comitiva do governo embarcou para Israel, sem nenhum cientista ou imunologista a bordo. Israel tem liderado a vacinação no mundo, por número de habitantes. É bom recordar que o governo israelense, quando eclodiu a pandemia, adotou uma postura negacionista. O mesmo caminho trilhou Boris Johnson, no Reino Unido, até ser contaminado, internado e quase morrer. Na UTI foi cuidado por dois imigrantes – que sempre renegou.  Saiu do hospital e mudou o discurso (ver gráfico a seguir sobre vacinação em alguns países).

Vacinação da população – primeira dose
(Países selecionados – em porcentagem da população total)

Fonte: CSSE COVID-19 da Universidade John Hopkins. Posição em em 10 de março de 2021, à exceção de países destacados.

A comitiva brasileira partiu em busca de um “milagroso” spray nasal, desenvolvido para tratamento de câncer de ovário, ainda em testes em Israel contra o COVID. A USP, há alguns meses, anunciou que está trabalhando num spray nasal com a mesma finalidade. Ninguém do governo foi lá ver do que se trata e dar apoio aos estudos.

Enquanto o governo tenta achar saídas para reerguer a economia, grande parte dos economistas fazem previsões pessimistas, baseadas em estudos e números, para a atividade econômica. No I Seminário de Análise Conjuntural, realizado no último dia 8 em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo, pesquisadores do IBRE mostraram que as expectativas de recuperação apontadas no seminário anterior, o IV Seminário de Análise Conjuntural de 2020, em dezembro, já não são mais as mesmas. Na época, já se especulava uma possível recuperação em V da economia, jargão usado pelos economistas para uma recuperação mais acelerada da atividade econômica. No último evento deste mês, no entanto, uma combinação de piora dos contágios e mortes pelo COVID-19, a lentidão na vacinação e as mudanças no cenário externo puxadas pelo movimento de alta de juros nos Estados Unidos, mostram um quadro mais pessimista para a economia brasileira este ano, como previram Silvia Matos, José Júlio Senna e Armando Castelar, pesquisadores do FGV IBRE.

Sem dúvida, gostaria de estar descrevendo outra situação. De uma agenda mais positiva, mais otimista. Mas, infelizmente, não dá para ir contra fatos e números. É verdade que algumas reformas importantes foram feitas nesses dois anos e pouco de governo, como o Novo Marco do Saneamento, a Lei das Licitações, a Autonomia do Banco Central, o Novo Fundeb, a Recuperação dos Estados, a Reforma Eleitoral, entre outras. A da Previdência já veio pronta do governo Temer, sendo aprovada nesse atual governo.

Mas, durante mais de um ano, antes que a pandemia desembarcasse por aqui, as promessas de implantar uma agenda liberal na economia não saíram do plano das ideias. As privatizações não andaram. O déficit primário, que se prometia zerar em um ano, fechou 2020 em 9,4% do PIB. Não houve melhora no ambiente de negócios – lembrando que o recente episódio de demissão do presidente da Petrobras torna mais inseguro investir aqui. Não se avançou na agenda da Produtividade. A taxa de desemprego chegou a 13,5% em 2020, a maior da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Temos mais gente na linha da pobreza. Nos isolamos do mundo, com uma diplomacia errática. Aí veio a pandemia e engolfou tudo, paralisando a atividade econômica, especialmente a que mais contribui com o PIB: os serviços. Sair desse imbróglio, numa pandemia e sem perspectivas seguras de ter vacina suficiente, é a grande incógnita.

Sofia, minha neta, a quem não vejo há quase um ano, preocupada com a demora em seu avô ser vacinado, começou a ler e pesquisar sobre a peste negra, que matou 1/3 da população mundial, e a gripe espanhola, que ceifou a vida de mais de 50 milhões de pessoas entre 1918-19. Depois de algum tempo pesquisando, me ligou.

Do alto de seus 14 anos, disse: “Vovô, acho que entendi por que o governo não quer vacinar rapidamente as pessoas. Querem que muitas pessoas morram, aí o vírus não tem mais como contaminar mais gente. É a tal da imunidade de rebanho que falam, não, vovô? ”

Cartas para a redação.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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