“É importante sinalizar para os agentes políticos e a sociedade em geral que é preciso fazer escolhas”

Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

As últimas semanas do economista Fabio Giambiagi foram de novidades no campo profissional. A primeira, com o lançamento do livro Tudo Sobre o Déficit Público: o Brasil na Encruzilhada Fiscal (Alta Books), que se une a uma lista de mais de 30 títulos entre escritos e organizados por ele. A segunda foi a incorporação de Giambiagi ao time de pesquisadores associados do FGV IBRE. Em uma longa conversa com a Conjuntura Econômica, primeira desde o anúncio do novo cargo, Giambiagi fez um balanço de sua trajetória na análise fiscal e previdenciária - que será publicado na edição de agosto da revista - e comentou temas da conjuntura, como os tratados abaixo.

Seu novo livro tem apresentação e linguagem diferentes. Qual a proposta?

Escrever esse livro sobre déficit público, de certa forma, foi uma volta às origens. Os mais jovens me conhecem como especialista na questão previdenciária, mas comecei a tratar de questões fiscais em 1987, quatro anos após ter me formado. E também foi uma tentativa de emular o livro de Paulo Tafner Reforma da Previdência - Por que o Brasil não Pode Esperar? (Elsevier, 2018), onde ele colocou tudo aquilo que sabia em uma linguagem acessível ao grande público. Então, busquei compartilhar um pouco do que aprendi, polindo a linguagem no sentido de alcançar um grupo de leitores mais amplo, mas sem se afastar do rigor profissional. Sujeito, às vezes, a críticas de quem acha que esse esforço acaba sendo uma certa distorção dos princípios acadêmicos.

O que eu gostaria é que este livro servisse para uma discussão cívica sobre a questão orçamentária.Considero que o orçamento deveria ser o debate mais importante em uma democracia, pois tem a ver com onde se alocam os recursos do contribuinte. E aqui no Brasil isso deixa muito a desejar. Aliás, uma das coisas que acho que transparece da leitura, ainda que não seja abordada diretamente, é a dicotomia entre os avanços observados no país no tema estatístico - pois hoje temos estatísticas que não devem nada às dos países mais avançados na matéria -, e um atraso institucional no processo de discussão orçamentária. É algo deprimente. Há poucos dias tivemos um episódio que ilustra isso, relacionado ao Fundo Eleitoral na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 no Congresso (em que se triplicaram as verbas destinadas ao Fundo, para R$ 5,7 bilhões). Vale esclarecer que não sou contra o Fundo Eleitoral, muito pelo contrário. Democracia custa caro, e isso tem que ser financiado através de recursos públicos. Mas em um contexto de tanta dificuldade, em meio à pandemia, triplicar a dotação orçamentária prevista sem nenhuma discussão prévia - como se diz em castelhano, “entre gallos y medianoche" -, sem mais transparência, é algo que faz pensar. Indica que o país avançou muito em alguns aspectos e está muito atrasado em outros.

Como espera que a mensagem do livro “converse” com a atual conjuntura, de pressão por aumento de gastos tanto na área de proteção social quanto para a recuperação da atividade econômica?

Ela se encaixa numa situação muito delicada. Tenho buscado aglutinar pessoas com visões diferentes em torno de algumas ideias para tentar, na medida do possível, alcançar certo grau de consenso no debate de 2022 visando a 2023. O que quero dizer? O debate fiscal, assim como muitas coisas no país, tem sido muito polarizado. Colocando de forma um pouco caricaturesca, apenas para situar, temos de um lado os defensores intransigentes da regra original do teto de gastos, que defendem que ela tem que ser mantida até 2026. E de outro lado aqueles que querem fazer tábula rasa dessa institucionalidade criada pela norma constitucional aprovada em 2016, que acenam com uma retomada sem controles do gasto público. Esse talvez seja um dos principais temas do debate público, em perspectiva, e embora eu esteja convencido de que o atual teto não sobrevive até 2026, por uma série de razões, o fato da regra do teto ser eventualmente mudada em 2023 não significa que a ideia de um teto tenha que ser descartada.

O que eu quero dizer com isso é que aqueles que atacam o teto e defendem mais gasto público podem encontrar guarida na defesa de outro teto que não o atual. Para ser mantido da forma original até 2026, o teto de gastos demandaria uma trajetória das despesas discricionárias ao longo dos próximos anos que é incompatível com a dinâmica política do país. E a política se encarregará, em 2023, qualquer que seja o presidente eleito, de mudar essa regra.

O ponto principal que a regra do teto trouxe para o país, e que acho que seria importante preservar nos próximos anos, é a ideia de que limites são importantes para a gestão fiscal. É muito importante sinalizar para os agentes políticos e para a sociedade em geral a ideia de que é preciso fazer escolhas, e que não dá para aumentar o gasto indefinidamente. ou seja,, podemos admitir a necessidade de ter um gasto que aumente um pouco mais no próximo governo, e isso pode ser consistente com um esquema geral de ajuste das contas públicas. Mas isso tem que ser discutido. Se quisermos gastar mais sem impactar a dívida pública, será necessário ter uma discussão adequada sobre os níveis de tributação que o país deseja. E estamos vendo, nessas últimas semanas, que esse é um debate complexo.

Então, há discussões importantes que terão de ser encaradas, tais como que regra substituta da atual regra do teto será vigente no próximo governo e quais são os níveis de tributação que a sociedade está disposta a aceitar. Mas o ponto principal é a ideia de que a noção de sustentabilidade fiscal, intrinsecamente associada ao debate do teto, é crucial. Ela não pode ser abandonada no contexto de uma compreensível demanda por mais gastos públicos em função de tudo o que aconteceu na pandemia, da sequela que fica no desemprego, da necessidade de se aumentar o investimento público, etc.

Uma coisa que nesse sentido me preocupa um pouco é a percepção de muita gente de que “ninguém aguenta mais esse nível de carga tributária”. Esse era um discurso que fazia todo o sentido no começo da década de 2010, porque entre o final da década de 1990 e o final da primeira década do século tivemos um aumento muito grande da carga tributária, que serviu para financiar um aumento expressivo do gasto público. Mas se a gente toma como referência o começo da década passada, 2011, e o que aconteceu no ano passado, perdemos 3 pontos do PIB de carga tributária. Claro que o que aconteceu em 2020 foi excepcional, e que este ano estamos vendo, felizmente, uma recuperação importante da carga tributária. Mas é importante que essa discussão ocorra no contexto da sustentabilidade fiscal.

Você é a favor de aumento da carga tributária? Qual sua análise do encaminhamento da reforma tributária – atualmente, concentrado na mudança do imposto de renda?

Sobre carga tributária, sim, sou a favor, numa magnitude que vai depender da situação em que a gente estiver em 2023. Por quê? Volto aos números: em 2011, a receita federal bruta foi 22,6% do PIB; no ano passado, 19,7%. Como disse, este ano vimos uma recuperação muito forte da arrecadação nos últimos meses, mas é natural imaginar que esta será atenuada, uma vez que saírem da base de comparação meses de receita deprimida como o segundo trimestre do ano passado. Então, vamos ver qual será a carga tributária final deste ano. E, para o ano que vem, tudo vai depender de qual proposta de reformulação do imposto de renda será efetivamente aprovada.

No caso da reforma, farei uma análise que retrocede um pouco no  tempo. Acho que o governo cometeu um erro de sequenciamento em 2019. Ele teve um desempenho excelente na articulação política - com mérito compartilhado entre o secretário Rogério Marinho (ministro o Desenvolvimento Regional, na época secretário Especial da Previdência) e o então presidente da Câmara dos deputados Rodrigo Maia (ex-DEM-RJ) - para uma aprovação com larga margem de uma boa proposta de reforma previdenciária, em outubro de 2019. Dadas as dificuldades que sabemos que existem no processo de tramitação política de questões controversas, não era preciso esperar a aprovação final da reforma da Previdência para entrar com o processo de discussão da reforma tributária. Uma vez que ela havia passado em primeiro turno na Câmara com aquela expressiva votação, seu destino estava traçado. Ou seja, o país inteiro aprendeu naquele dia dos 380 votos que aquele processo chegaria ao final, que não haveria desvio de curso. Mas o que chama a atenção é que o governo não encaminha oportunamente essa discussão e envia três PECs simultaneamente (Emergencial, dos Fundos e do Pacto Federativo), no final de 2020, que não endereçavam nenhuma questão em particular, com o foco adequado. Voltando ao que aprendemos nas aulas de física do ensino médio, isso foi uma dissipação de energia absolutamente formidável. Ao invés de se focar no que era essencial, perdeu-se capital político numa proporção inacreditável. E o país perdeu seis meses entre outubro de 2019 e março de 2020, quando começou a pandemia, e se ficou na discussão sobre o que o governo pretendia efetivamente na matéria tributária, até que se apresentou essa ideia do sequenciamento.

No que está em discussão no campo dos impostos indiretos, de unificação de PIS e Cofins, acho que poderá evoluir, mas é uma coisa menor. Já no caso da discussão do imposto de renda, tenho conversado com muitos colegas, até porque não sou especialista em tributação, e o ambiente que se vive é de total perplexidade. Sabemos que em um sistema politicamente fragmentado como o nosso, nenhum governo é ingênuo de pensar que, se enviar um pacote de 10, vai aprovar 10. Em geral, manda-se um pacote com gordura, sabendo que ele será desidratado. O que é incompreensível no atual processo é que haja uma tentativa de se ter ganho no final, e no processo o governo dizer que se satisfaz com a perda. Substitutivo a um projeto normalmente é uma variante mitigada do texto original. No caso da proposta previdenciária, que acompanhei de perto, o governo mandou em fevereiro ou março de 2019 um projeto de reforma. Depois, este começou a ser discutido na comissão, houve um princípio de negociação política, e esta foi sabiamente conduzida pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP). Era um projeto que preservava em 80% a 85% as linhas do original. Agora, nesta discussão do imposto de renda, o projeto do relator é quase uma negação do projeto original, vai em uma direção contrária. Independentemente do reconhecimento de que alguns exageros do projeto original teriam que ser corrigidos, não era o que se esperava.

Então, isso gera uma enorme incerteza, associada a algo básico que é ter a resposta à seguinte pergunta: afinal, o que o governo quer? Aumentar a carga, manter a carga ou reduzi-la? Fala-se em R$ 30 bilhões como se fosse trocado. Isso representa 30% das despesas discricionárias. É uma enormidade. Deixamos de fazer o Censo por algo em torno de R$ 2 bilhões, criando um constrangimento internacional, e agora aceitamos perder R$ 30 bi numa boa? Não deixa de ser algo chocante.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir