“É impensável que o orçamento de 2021 seja aprovado sem se prever uma suplementação para o enfrentamento da COVID-19”

Mônica Viegas, coordenadora do Grupo de Estudos da Saúde e Criminalidade do Cedeplar/UFMG

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Desde o início da pandemia sabia-se que a capacidade de resposta de cada estado para lidar com a população contagiada era diferente, e alguns precisariam de mais apoio do governo central. Nesse sentido, a situação que vemos hoje em Manaus se justifica?

O Brasil é muito desigual na distribuição da oferta de serviços de saúde, principalmente na alta complexidade, como é o caso de leitos UTI. A oferta de leitos UTI é claramente menor no Norte e Nordeste do país. Como se observou na primeira onda, alguns estados, principalmente no Sul e Sudeste, tiveram condições de dar uma resposta rápida, mesmo tendo déficit de leitos UTI. Algumas medidas foram tomadas basicamente combinando expansão da oferta e gerenciamento muito drástico da taxa de contaminação, com fechamento dos serviços não essenciais. Isso aconteceu por exemplo em São Paulo e Belo Horizonte. A gestão com auxílio de especialistas da área foi fundamental nesse processo. Na região Norte, era claramente necessário expandir a estrutura de oferta, que requer não somente mais recursos físicos, mas recursos humanos, sobretudo profissionais de saúde adequados para tratamento de pacientes com problemas pulmonares graves. Como essa expansão não é trivial, principalmente em localidades sem nenhuma capacidade de atendimento prévia, também seria necessário adotar, de forma drástica, medidas de contenção da velocidade de propagação do vírus.

Para ter uma ideia da gravidade do problema de oferta, realizamos um exercício de simulação que permite verificar a pressão que a demanda gerada pela COVID-19 teria no sistema de saúde. Nesse exercício, consideramos a oferta existente em dezembro de 2019 e a demanda usual de internações já observada no Brasil. A pergunta que queríamos responder era se, caso 1% da população fosse infectada, o sistema daria conta de absorver essa demanda excedente. Para responder a essa pergunta, consideramos quatro cenários de tempo em que essa parcela da população seria infectada: 1 mês, 3 meses, 6 meses e 12 meses. A ideia era verificar em que medida o achatamento da curva aliviaria a pressão sobre o sistema, e em quais desses cenários o sistema colapsaria. Os resultados para leitos UTI são impressionantes. De uma forma geral, nos estados da região Sudeste, Sul e Centro Oeste, o achatamento da curva de infecção poderia impedir o colapso do sistema. Em todos os estados do Norte e em boa parte dos estados do Nordeste, apenas medidas de contenção não seriam suficientes. No Norte, considerando conjuntamente leitos SUS e leitos privados, o sistema entraria em colapso não importando a velocidade em que 1% da população seria infectada. Isso significa dizer que o sistema de saúde na região Norte não teria condições de atender a essa demanda extra gerada pela COVID-19. A situação é ainda mais grave no estado do Amazonas, onde a pressão seria maior, uma vez que o estado apresenta uma oferta de leito UTI mais baixa relativamente à demanda.

Houve decisão precipitada de desmonte de estruturas temporárias?

Com a desaceleração da pandemia, na maior parte das grandes capitais houve desativação dos leitos de campanha ou leitos realocados para COVID-19. O Brasil não observou a mesma evolução da Europa, onde houve uma redução drástica de casos, mas vivenciamos uma desaceleração, ainda que mantendo o número de casos em patamares elevados. À medida que a taxa de contaminação diminuiu, que houve redução na necessidade de cuidado hospitalar pela COVID-19, era esperado que as instalações fossem desativadas, através de gerenciamento e regulação dos leitos. Além disso, há hoje um problema de escassez de recursos humanos, em parte devido à contaminação desses profissionais e ao stress. Assim, alguns leitos foram desativados devido à falta de profissionais.

A duração longa da pandemia é um desafio a mais para os gestores, uma vez que tanto a população fica cansada de promover o distanciamento social, aumentando a contaminação, como há um desgaste dos profissionais. Não considero que houve decisão precipitada. A montagem dessas estruturas temporárias com uma taxa de ocupação baixa é muito cara para o sistema, sendo natural que ocorra esse desmonte. Foi assim também na Europa. A questão aqui no Brasil é que não temos testagem e muito menos rastreamento de casos como medidas de controle para garantir um bom monitoramento da pandemia. Se as autoridades fossem capazes de manter um monitoramento transparente da pandemia, de modo que a população também pudesse acompanhar o que está ocorrendo na cidade e implementar medidas de fechamento e abertura, esse desmonte não seria tão problemático. Infelizmente, no Brasil as medidas de isolamento acabam não sendo eficientes porque não são totalmente restritivas, devido à própria pressão da sociedade, por motivos econômicos, e por não estarem combinadas com testagem e rastreamento.

O orçamento da Saúde para 2021 é menor do que o do ano passado. Teremos que continuar tratando o planejamento da saúde através de emendas?

O SUS enfrenta um problema de subfinanciamento crônico desde sua criação. Infelizmente, nesses 30 anos de existência, o SUS teve que concorrer com orçamento da previdência social, uma vez que não havia uma rubrica específica para a saúde. Apesar da participação do gasto com saúde em termos percentuais do PIB se equiparar a da média dos países da OCDE, o gasto per capita no Brasil é muito baixo. Além disso, a composição do gasto entre os setores público e privado é bastante insatisfatória. O gasto privado é majoritário, respondendo por mais de 50% do gasto total com saúde no Brasil. O Brasil é o único país com sistema público universal que tem gastos privados com participação majoritária.

O orçamento da saúde aprovado para 2021, em termos nominais, não é muito diferente do que foi realizado em 2020 (desconsiderando os gastos com a COVID-19), mas é lamentável que não estejam previstos gastos extraordinários com a COVID-19, que necessariamente irão ocorrer dado que a pandemia está em curso. O orçamento aprovado prevê basicamente o pagamento das ações em serviços públicos em saúde, principalmente despesas correntes com atenção primária e cuidado hospitalar. A Emenda Constitucional 95 congelou os gastos com investimento. É impensável que o orçamento de 2021 seja aprovado sem se prever uma suplementação para o enfrentamento da COVID-19, sobretudo compra de vacinas e insumos. O valor previsto para compra de vacinas diz respeito aos gastos com as vacinas já previstas no calendário vacinal que não incluem a da COVID-19. Além disso, provavelmente teremos uma pressão de serviços devido à demanda reprimida por cuidado preventivo e acompanhamento de doenças crônicas. Todos esses elementos contribuem para que o financiamento seja insuficiente e deixam explícito a falta de planejamento do governo federal e o desrespeito com a saúde da população. É fundamental que o governo federal ofereça um planejamento das ações para imunização e enfrentamento da pandemia e de suas consequências.

Qual considera o principal desafio na estratégia de vacinação?

O principal desafio é ter a vacina e os insumos para que a imunização da população seja realizada. Esses dois problemas estão ainda sem solução definitiva no Ministério da Saúde. Felizmente temos capacidade técnica na Fiocruz e no Instituto Butantan para produzir a vacina, mas é necessário garantir o planejamento para a compra dos insumos.  É inadmissível que o Brasil, que conta com um programa nacional de imunização (PNI) com 47 anos de existência, universal e totalmente gratuito, que inclui 15 vacinas para crianças, nove para adolescentes e cinco idosos não tenha ainda conseguido organizar o programa de vacinação da COVID-19.  O PNI foi responsável pela erradicação de diversas doenças infectocontagiosas no Brasil e pela consequente mudança no perfil epidemiológico da população.  A capacidade técnica herdada do PNI garante ao SUS capacidade logística para garantir que a vacina, uma vez garantida, chegue à população. O SUS tem capilaridade no país inteiro e principalmente entre a população mais carente, para garantir condições de que a vacina, uma vez disponível, seja aplicada. A elevada cobertura da Estratégia de Saúde da Família é um ponto a favor dessa operação de guerra que é vacinar uma população de mais de 200 milhões de habitantes.

O segundo maior desafio, a nosso ver, é conter a onda negacionista que impera no país, sobretudo quando esta é liderada pelo próprio presidente e por correntes nas redes sociais que ganham muita força. Há evidências claras de que o ressurgimento de doenças já erradicadas em outros países está associado à onda negacionista. Além disso, o comportamento do presidente, com disseminação de informações falsas sem evidência científica sobre efeitos adversos da vacina, pode ser um inimigo importante. A vacina, para garantir imunidade de rebanho na população, tem que apresentar graus de cobertura bastante elevados e, dessa forma, a resistência de alguns grupos pode ser um elemento fundamental a ser vencido neste ano.

Este ano, qual o panorama para o tratamento da saúde da população que não seja Covid-19? Teremos problemas de cobertura?

A nosso ver, o principal problema, passada a pandemia, é conseguir reorganizar o sistema. A organização do SUS está totalmente dedicada para o enfrentamento da COVID-19 e diversas ações que já eram consolidadas no SUS foram paralisadas para garantir o enfrentamento da pandemia. O cuidado da atenção primária e secundária está bastante comprometido, tanto pela dificuldade da população de acessar os postos de saúde, por medo de contrair o vírus, como pela escassez de profissionais. O acompanhamento de pacientes com doenças crônicas é fundamental para garantir que a doença não evolua para condições graves.  Provavelmente, vivenciaremos um aumento de demanda por serviços de saúde devido ao adiamento de cirurgias eletivas, ausência de controle preventivo e acompanhamento dos pacientes com condições crônicas. Somente o atendimento de urgência se manteve relativamente estável durante a pandemia, uma vez que esse cuidado não pode ser adiado.

A pandemia trouxe também impactos econômicos com grave crise no emprego e consequente redução da cobertura privada. Essa redução da cobertura privada pode gerar uma pressão no SUS, com a migração de indivíduos do sistema privado para o público.

Em entrevista à revista Conjuntura Econômica no início da pandemia, você mencionou que a experiência da Covid-19 deixará lições importantes no endereçamento das ineficiências do SUS. Quais você identifica até agora?

Uma das principais ineficiências do sistema de saúde brasileiro diz respeito à integração entre os setores público e privado, que até então era praticamente inexistente. A pandemia escancara a necessidade de criação de mecanismos de integração entre os dois sistemas no Brasil. Se queremos ter um sistema misto com duplo acesso para aqueles que podem pagar, temos que garantir mecanismos regulatórios que permitam essa integração, para que o bem-estar da população seja garantido. Um exemplo claro dessa necessidade de integração foi a ausência de uma regulação do sistema de leitos. Essa regulação garante mecanismos muito mais eficazes para o enfrentamento da pandemia e redução das desigualdades. Em Belo Horizonte, por exemplo, os leitos UTI e enfermaria estão sendo monitorados conjuntamente pela prefeitura, que pôde tomar as medidas de fechamento e abertura considerando a oferta total disponível. Além disso, a partir dessa integração, se necessário, é possível ao setor público negociar com o setor privado para garantir atendimento para toda a população.

Um segundo aspecto importante diz respeito à regionalização do cuidado de média e alta complexidade. Esses cuidados, por apresentarem economias de escala, nem sempre são passiveis de serem ofertados localmente e precisam estar organizados em uma rede de cuidado regional que garanta atendimento integral para toda a população, em um tempo razoável que não comprometa a condição do paciente. A pandemia da COVID-19 demonstrou a presença de ineficiências, uma vez que a distribuição de nossa oferta não está bem organizada entre as regiões de saúde. Além da distribuição desigual do cuidado, há, sobretudo no cuidado hospitalar, presença de hospitais sem nenhuma resolutividade, os chamados hospitais de pequeno porte. Esse conjunto de hospitais é altamente ineficiente e pouco resolutivo. Além disso, é fundamental garantir logística de transporte de pacientes dentro dessas regiões. Essa logística de transporte permitiria que hospitais de pequeno porte fossem fechados ou tivessem seu papel na rede repensado.  Nesse caso, os pacientes poderiam ser atendidos em estabelecimentos mais bem equipados. Em 2020, o orçamento para o SAMU foi ampliado de forma bastante significativa (35 vezes mais) para dar conta do transporte desses pacientes, mas há indícios de que os valores em 2021 retornarão aos níveis de 2019.  Essa organização da logística de transporte que foi alcançada com a pandemia da COVID-19 precisa ser preservada.

 


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