Duas receitas de como recuperar crescimento e emprego em 2021 sem desancorar os gastos públicos

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Sem pistas garantidas sobre o potencial de reação da atividade a partir da redução do pacote emergencial de ajuda econômica, e dúvidas sobre a extensão da nova onda de contágio pelo novo coronavírus no Brasil, Executivo e Congresso chegam ao fim do ano pressionados para definir qual rumo levará o país à construção de uma nova normalidade com expansão econômica.

O alto grau de incerteza acirra as diferenças no receituário dos economistas, como demonstrou o debate entre Laura Carvalho, professora livre-docente da FEA/USP, e Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, no webinar “Como gerar um novo ciclo de crescimento”, promovido dia 26/11 pelo FGV IBRE em parceria com o jornal Folha de S. Paulo. No evento, com moderação do repórter especial da Folha Fernando Canzian, ambos defenderam um mesmo objetivo – retomar o crescimento e proteger a camada mais vulnerável da população, sem descuidar da disciplina nos gastos públicos –, apontando, entretanto, fórmulas distintas para isso. 

O primeiro desvio de rota entre os especialistas se dá por perspectivas diferentes sobre a capacidade de restabelecer a atividade econômica sem o apoio de novos estímulos. Para Laura, a retirada total do auxílio emergencial na virada de ano é nada promissora. “Quando somamos o valor per capita do auxílio em cada domicílio na renda do trabalho das pessoas, antes e durante a pandemia, vemos claramente que a desigualdade cai com o auxílio e sobe sem ele. Os efeitos da saída dessa transferência não serão triviais”, afirma, lembrando ainda que o choque sanitário se deu sob um terreno que já era desfavorável, marcado desde 2015/16 por um aumento gradual da desigualdade e fragilização do mercado de trabalho. “Teremos uma situação social e econômica complexa, e vai ser difícil garantir uma retomada rápida sob esse contexto”, diz.

Pessoa, por sua vez, acredita numa recuperação em “V”, com a poupança acumulada pelo setor privado em 2020 – que somente no primeiro semestre somava quase R$ 450 bilhões a mais em relação ao mesmo período de 2019 – sendo propulsora da atividade em 2021. O pesquisador considera que a efetividade do pacote emergencial em termos de sustentação da atividade ficou aquém do ideal – em sua conta, cada ponto percentual (pp) de gasto reduziu a queda do PIB em 0,25 pp –, especialmente considerando que este elevará a dívida para cerca de 95% do PIB. E defende que o melhor caminho a ser traçado a partir de agora é retomar a prudência fiscal e o teto de gastos, evitando uma pressão inflacionária que prejudicaria a população de mais baixa renda. “Para mim, as condições para a atividade econômica voltar dependem mais de a gente construir um orçamento que caiba no bolso do estado brasileiro do que renovar um auxílio que é insustentável do ponto de vista fiscal” afirma, apontando que tal medida estimularia a percepção de insolvência pelos mercados financeiros, que desorganiza as expectativas e leva o câmbio a uma maior desvalorização, rebatendo nos preços. “A inflação está acelerando. Por enquanto, são choques, mas em maio do ano que vem contra maio deste ano o IPCA já estará rondando os 5,5%. Se não passarmos por processo de consolidação fiscal, entraremos em espiral inflacionária. É um movimento gradual, sem ruptura, mas quando se instala quem mais perde são os mais pobres. E quando a inflação se instaura, é muito difícil combatê-la”, diz.

Laura considera que a manutenção do atual desenho do teto de gastos é incompatível com a necessária ampliação das políticas sociais para amparar a população que não conseguirá restabelecer sua renda rapidamente, devido aos efeitos mais persistentes do choque de Covid-19. A economista não condena a existência de uma regra fiscal focada em limitar o gasto público, considerando-a inclusive melhor que a meta de resultado primário, cujo caráter procíclico – de contar com menos recursos quando se cresce menos, e vice-versa – “tende a exacerbar crises e sobreaquecer expansões”. Mas defende que esta deveria se alinhar à experiência internacional, que leva em conta elementos como arrecadação prevista e trajetória da dívida, para determinar uma meta plurianual mais flexível, respeitando a relação dívida/PIB pretendida no período. “O atual desenho do teto de gastos, reajustado pela inflação, não permite que a gente gere uma arrecadação maior – seja com CPMF, ou com a redução de isenções e aumento da alíquota efetiva de tributação da renda, como defendo –, e a converta em mais gasto social. Quer dizer, o desenho do teto é estático e independente do crescimento da economia, da arrecadação e da própria trajetória da dívida”, afirma. “Isso nos deixa numa armadilha, com a Previdência consumindo parte cada vez maior do orçamento, apesar da reforma, reduzindo o espaço para os demais gastos a cada ano”, acrescenta, apontando que em 2021 esse quadro se tornará ainda mais nítido.

Para Laura, esse é parte do motivo do impasse que a equipe econômica do governo vive ao propor alternativas de ampliação dos gastos sociais. “As propostas feitas até agora – remanejar recursos de outros programas como BPC e abono salarial, desindexar o salário mínimo da inflação e congelar as aposentadorias por dois anos –, além de gerarem resultados modestos, em geral retiram ajuda de estratos médios que tampouco têm tido folga nessa crise. Em termos de recuperação econômica e desigualdade, não são planos efetivos”, diz. Ainda que reconheça que ambientes de crise são ruins para discussões de longo prazo, pelo risco de desviá-las de seus objetivos iniciais, Laura considera que insistir em um teto que se mostra de difícil sustentação pode gerar implicações não menos importantes. “O teto está colapsando. A busca de manobras para mantê-lo, como usar fundos extra-teto para pagar prorrogação do auxílio, ou prorrogar decreto de calamidade, também gera consequências que se refletem nas expectativas de investidores para o Brasil”, afirma. “Como acho que essa discussão terá que vir, preferiria antecipá-la e fazê-la de forma transparente.”

Já Pessôa defende que uma revisão do teto não deve ser realizada no contexto de epidemia e saída de um orçamento de guerra. “Primeiro temos que construir um orçamento que faça sentido com a nossa realidade. Teremos redução forte do gasto público, e com juros baixos vamos retomar o crescimento”, afirma, colocando essa discussão para um segundo momento. “Aí podemos rediscutir tudo, pois nosso desenho institucional permite”, diz, ressaltando que desde a promulgação da Constituição de 1988 são aprovadas, em média, três emendas constitucionais por ano. “Mas primeiro temos que virar a página da epidemia, reconstruir uma normalidade. Aí o câmbio volta um pouquinho, pressões inflacionárias talvez se dissipem, e ficamos em condição de recuperar as perdas de crescimento. E, no ano seguinte, podemos repensar todo o contrato social: o teto de gastos, um programa social mais abrangente, desde que se privilegiem formas de aumento de arrecadação mais do que de gastos, para não perder de vista a redução da dívida pública.”

No webinar, o pesquisador reforçou sua aposta em uma recuperação positiva em 2021, lembrando que as estimativas de retração do PIB para este ano já caíram significativamente. “O IBRE prevê queda de 5%, maior ainda que a do Focus, de 4,5%. Mas quando se observa a previsão do IBRE para o quarto trimestre em relação ao do ano passado, todos os setores voltaram a níveis superiores”, afirma, excetuando dessa estimativa os segmentos de outros serviços – que inclui atividades entre as mais afetadas pela pandemia, como alimentação fora de casa, turismo, entretenimento e serviços pessoais – e serviços da administração pública. No caso deste último, ele lembra que a demanda é garantida, assim que atividades como as das escolares voltarem. “No caso de outros serviços, minha avaliação é de que, passando a epidemia, todos voltarão a consumi-los, e vamos recuperando. Como disse, há liquidez acumulada no setor privado para iniciar esse processo. Se voltarmos para uma realidade orçamentária, acho que o câmbio volta, as pressões inflacionárias se desfazem, e vamos manter política monetária frouxa por mais tempo”, reitera. Laura, entretanto, destaca as incertezas que ainda permanecerão no radar até que haja um programa amplo de vacinação, e defende prudência ao se prognosticar o risco de dominância fiscal e descontrole inflacionário adiante. “É fato que a dívida pública subiu muito, e o vencimento dos títulos públicos estão sendo encurtados. Por outro lado, o custo médio da dívida, que chegou a 14% em 2016 é menos de 8% hoje, e a desvalorização do real acima das demais moedas faz parte de um histórico de volatilidade que não é novo”, diz. Ela aponta que, de 2001 a 2019, o real foi a moeda mais volátil, seguida da lira turca. “Nesses 19 anos pré-pandemia, somente em quatro deles o real não foi a moeda que mais variou. Então, não temos elementos para dizer que desvalorização do real é fruto de percepção da dívida pública brasileira descolada da percepção de dívida pública de outros países”, afirma.

Não fossem suficientes os argumentos de ambos os lados, Laura e Pessôa lembram que o rumo a ser traçado para 2021 ainda dependerá de escolhas políticas, sob um cenário não menos incerto. Eles apontam que, ainda que a equipe econômica seja peremptória em demonstrar as restrições de caixa, o auxílio emergencial resgatou a popularidade do presidente da queda livre registrada no início da pandemia, e isso pode não ter saído de seu radar. “O presidente agora terá de lidar com as contradições de seu projeto de governo. Ele foi eleito com medidas liberais que eram uma continuidade do governo Temer e supriam uma demanda do topo da pirâmide, que associava corrupção a crise econômica, e entendia que estado mínimo controlava a corrupção”, descreve Laura, contrapondo essa situação à do presidente na pandemia, quando seu comportamento o fez perder no topo e ganhar na base. E que hoje culmina, defende economista, na falta de um projeto de crescimento econômico que transcenda a agenda de reformas – a qual tampouco avançou este ano. “Da forma como caminhamos, precisaremos de duas décadas para recuperar a renda per capita de 2014, e recuperar o emprego dessa época também. Por isso, para além das diferenças minhas e de Samuel no campo da teoria macroeconômica, o mais crítico hoje é ter uma agenda para a retomada da economia brasileira”, defende.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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