Desabastecimento e alta de preços podem atrasar a retomada de lançamentos no setor imobiliário, diz Ana Maria Castelo

Ana Maria Castelo – Coordenadora de Projetos da Construção do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Depois de cair 8,1% no segundo trimestre em relação ao tri anterior, O PIB da construção cresceu 5,6% no terceiro trimestre, na mesma comparação. O mercado queria mais. Foi um resultado ruim?

Olhar o PIB trimestral da construção, sempre foi uma coisa complicada. No segundo trimestre ele surpreendeu positivamente porque veio menos negativo do que se projetava. E no terceiro trimestre foi o contrário: surpreendeu negativamente. Há um descolamento entre o que o PIB está refletindo e o que a gente está observando em um conjunto de indicadores. Para analisar melhor essa conjuntura, primeiro é preciso lembrar que o PIB da construção é dividido em dois bolos principais: uma parte do PIB vem do setor formal (52%), e os outros 48% são o que chamamos de autoconstrução/autogestão, as reformas feitas por pessoas em suas casas, que respondem pela maior parcela da demanda por materiais.

No lado da autogestão, tivemos uma surpresa positiva, pois inicialmente imaginávamos que a pandemia traria um impacto negativo na demanda por obras. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Acho que aí houve dois efeitos: um do auxílio emergencial, que em regiões como Norte e Nordeste representou um crescimento real de renda para os beneficiários, e parte dessa renda foi direcionada à melhoria de seus imóveis.  O segundo efeito foi entre a classe média e alta, que quando teve de se isolar dentro de casa também perceberam a necessidade de reformas. O resultado pudermos ver nas vendas de materiais de construção. De janeiro a novembro, as vendas de cimento acumularam alta de 10,4% em relação ao mesmo período do ano passado. Mas, neste último mês, o ritmo de crescimento diminuiu (a venda por dia útil caiu 5,2% em comparação a outubro, de acordo ao Sindicato Nacional da Indústria de Cimento – SNIC). De qualquer forma, esse movimento foi inesperado. Pelas características da crise, que levou à paralisação da atividade nas fábricas, foi difícil atender uma procura por materiais de construção da magnitude que houve. Essas indústrias responderam tardiamente, gerando um descompasso com a demanda.

No outro lado, do setor formal, também houve paralisação de obras, até o momento em que se autorizou sua retomada, ao serem consideradas atividades essenciais. Então as obras que estavam em andamento acabaram agora, e os indicadores apontam que esse segmento já retomou o patamar de antes da pandemia. O que também surpreendeu positivamente foi a capacidade de reinvenção das construtoras, com a estratégia de vendas através de stands online. Ninguém pensou que fossem ser tão bem-sucedidos em vender virtualmente. Pesquisas divulgadas pela Secovi (para São Paulo), Cbis e Abrainc demonstram um crescimento das vendas extraordinário, concentrado especialmente em imóveis de perfil econômico, do Minha Casa Minha Vida. E o que explica esse movimento de vendas? Por um lado, o contexto favorecido pelas taxas de juros baixas, que tirou a atratividade da poupança, ao mesmo tempo que permitiu a expansão do crescimento do crédito, a taxas mais reduzidas.

O que então levou a um crescimento abaixo do esperado no terceiro trimestre?

Parte do termômetro do IBGE para medir a atividade, que é a base de rendimentos calculada pela PNAD, deve ter segurado esses números. Mas, como disse, olhando para outros indicadores da construção, vemos claramente uma retomada vigorosa no terceiro tri.

Setor reage, mais não o suficiente para recuperar-se do choque
Principais números: (12 meses encerrados em setembro em relação aos 12 meses anteriores)

Fonte: Abrainc.

Que fatores podem comprometer a manutenção dessa retomada?

Veja, embora a demanda tenha refluído, temos que lembrar que a construção saiu de um encolhimento de 30% entre 2014 e 2018. Quando perguntamos aos empresários os fatores que limitam a melhoria de seus negócios, eles ainda assinalam a demanda. Em 2019 registrou-se uma melhora, e para 2000 se esperava um bom ano de crescimento, comprometido por causa da pandemia. Então, a sinalização é de que estamos retomando esse ciclo, mas ainda temos um longo percurso a trilhar.

Entre as preocupações imediatas do setor, temos esse descompasso entre oferta e demanda de insumos. Além da demanda das famílias, houve a demanda das construtoras retomando, e refletindo justamente o compasso de melhora. E a indústria fornecedora de matérias-primas se ressente da elevação de preços. Cimento tem impacto do preço de energia e frete. A sucata da qual se fabrica o aço é referenciada em dólar, assim como o PVC, que usa resina, e materiais elétricos dependentes do cobre, para citar alguns exemplos.

Esse contexto de preços altos e desabastecimento poderá prejudicar a retomada dos lançamentos do setor imobiliário?

Acho que pode gerar algum atraso adicional, porque essa escalada de preço desorganiza os orçamentos. Fica difícil iniciar uma obra com o preço de materiais subindo (pelo INCC do FGV IBRE de novembro, materiais e equipamentos registravam alta de 16,5% no acumulado do ano, com destaque para materiais para instalação elétrica, com 35%; material metálico, com 25,1%; e para instalação hidráulica, também com 25,1%).  No último webinar de Análise Conjuntural, Silvia Matos destacou o elevado nível de incerteza pelo qual a economia brasileira ainda passa, se falar da própria evolução da pandemia, e esses são elementos que refletem esse cenário.  

Se olharmos na área de infraestrutura, contratos que geram desequilíbrios são difíceis de renegociar com o setor público. Nas obras privadas, em geral esses aumentos são repassados para a prestação do imóvel. Por enquanto, pesquisa da Abrainc indica que isso não está acontecendo. Até porque tem prevalecido a negociação entre empresas. No próprio sistema de crédito habitacional, programas como o lançado pela Caixa, de carência de seis meses para o pagamento das prestações na compra de um imóvel novo, reflete esse clima.  

O fato é que, se as vendas do estoque de imóveis tenham sido retomadas de forma vigorosa, no caso dos lançamentos o período de interrupção pela pandemia não será facilmente recuperado. Se comparado com os números de 2019, embora as empresas tenham voltado a lançar projetos, ainda há queda. Isso significa que você joga para frente um ciclo que vinha desde final de 2018, que ainda estava muito concentrado nas regiões Sul e Sudeste, mas que começavam a mostrar capilaridade. De qualquer forma, se forem mantidas as condições de crédito a taxas de juros mais baixas, esse ciclo se retoma.

Construção é afetada pela falta de matéria-prima

Fonte: Sondagens FGV IBRE.

O que espera para o setor em 2021?

Temos problemas de ordem geral que irão se colocar no início do ano, como a questão fiscal e do investimento, que pode encolher mais ainda. Isso pode ser o lado negativo. O mercado de autogestão não deverá vai crescer no mesmo ritmo de 2020, pois esse ciclo de reformas deve chegar ao fim, e a demanda por material não deve ter mais a exuberância que teve. O mercado imobiliário já conta com alguma atividade contratada. Considerando a dinâmica positiva registrada pelo mercado formal neste semestre, isso certamente garantirá algum crescimento para 2021. Mas a continuidade desse movimento tem suas variáveis. Não dá para imaginar que mercado imobiliário vá crescer à revelia da economia, puxado só por pessoas que estão tirando recursos da poupança. Isso nunca seria suficiente para sustentar um boom imobiliário. Para que isso aconteça, é preciso engatar uma melhora de renda e do mercado de trabalho.

Do lado da infraestrutura, os desafios são grandes, porque precisamos captar recursos externos para continuar acrescendo e aumentando os investimentos. Temos um potencial de crescimento enorme, a aprovação marco regulatório de saneamento abriu um mercado om perspectivas muito favoráveis. Por outro lado, há elementos que atrapalham, como nossa política ambiental, que passou a jogar contra a atração do investidor externo.

Em resumo, para recuperar o que perdemos, precisamos de uma retomada inequívoca de renda e mercado de trabalho, e atração de investidor externo.

No início deste ano, os atores do setor alimentavam grande expectativa de que, com avanços regulatórios no mercado de crédito, se poderia ampliar as alternativas de financiamento do setor. O comportamento de instrumentos como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e as Letras Imobiliárias Garantidas (LIG), entretanto, tem ficado aquém das expectativas.  A pandemia retardou esse caminho?  

O que definitivamente deu alento ao setor de crédito este ano foi a poupança. Sua participação cresceu enormemente, e com isso validou a expansão do crédito, junto com a redução das taxas de juros. As ferramentas de captação no mercado de capitais realmente ainda não vingaram a ponto de representar um diferencial, uma complementação que venha dar tranquilidade ao mercado. Como a poupança possibilitou essa ampliação de disponibilidade de crédito, entretanto, esse tema não preocupou o setor. Mas o fato é que ainda estamos longe de prescindir da poupança e do FGTS no funding do mercado imobiliário.

Poupança – junto ao FGTS – ainda é quem sustenta o crédito imobiliário
Carteira de crédito do SBPE em setembro de 2020, em R$ bilhão

Fonte: Blog do POCH, com dados do BC.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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