“Dedicar-se a uma costura diplomática para o acordo Mercosul-União Europeia seria um sinal positivo do novo chanceler”

Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE, professora da Uerj

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O que podemos esperar com a saída de Ernesto Araújo e a nomeação do embaixador Carlos Alberto Franco França como novo ministro de Relações Exteriores?

O ponto central dessa análise é a direção da política externa, e sobre esta não há sinalização de mudança de diretrizes. Mesmo porque, sequer era intenção do presidente que Araújo saísse. Mas o ministro exagerou. Bateu de frente no Congresso, com a senadora Katia Abreu, e a situação ficou insustentável. Pode ser que, para dentro do Itamaraty, haja alguma sinalização de uma relação mais amistosa.  Nas demais esferas, é difícil pensar em resgate de credibilidade.

A questão é que o Brasil está ficando totalmente isolado, perdendo o capital conquistado na década de 1990. Nesse período, ganhamos voz ativa na agenda ambiental, pois a levamos a sério. Não a encaramos como assunto de país rico.  Hoje essa é uma agenda que perpassa todos os governos, a sustentabilidade entrou para todas as agendas, mas perdemos nosso lugar. Também tínhamos participação nos sistemas da Organização Mundial do Comércio (OMS), da Saúde (OMS). Éramos uma economia menor, mas com soft power em termos de participação.  

Agora fomos colocados de lado, especialmente pela forma com que conduzimos a pandemia. Passamos a ser vistos como ameaça.

Como recuperar isso? Não é simplesmente mudando ministro, pois essa questão de credibilidade não parece ser uma preocupação do Executivo. Lógico que há pressão para que o Brasil reduza seu grau de isolamento dentro do governo, de interesses específicos, como do agronegócio, e mesmo no Congresso. Mas, se o governo for levando com jeitinho, a diretriz da política externa não vai mudar. A China, por exemplo, tem sido muito condescendente. Sobe o tom quando o governo brasileiro se excede em suas declarações, como seria normal com qualquer outro país, mas não fizeram nenhuma retaliação.

De qualquer forma, no curto prazo, se o novo ministro não atrapalhar, se não criar atritos, isso já será um certo ganho. Mas nada além de isso.

Levando em conta uma mudança de cenário que demande uma postura mais amena do presidente – como já acontece para a negociação de insumos e vacinas contra a Covid-19, ou mesmo frente ao endurecimento da postura do presidente dos Estados Unidos Joe Biden quanto a questões ambientais –, a troca de ministro não poderá ser positiva?

Sabemos pouco sobre Carlos Alberto França, além ser conhecido por um perfil mais amigável que o do ex-ministro e não ter experiência em negociações internacionais. Talvez sendo uma nova cara, por esse aspecto de imagem – já que a imagem deixada por Araújo foi muito forte, de discursos complexos –, pode ajudar. Mas não vai mudar a agenda da política externa. Se Bolsonaro for mais pressionado por assuntos importantes sobre os quais tenha que responder, pode ser positivo ter um ministro mais conciliador. Pois, para uma liderança, personalidade também importa. Vimos pelo exemplo de Araújo, de ser contundente, se contrapor, numa atitude contrária inclusive à disciplina dos diplomatas. França já trabalhou no governo de Dilma Rousseff, de Michel Temer, o que aponta a uma postura efetivamente mais diplomática. E nesse sentido pode ajudar, pois as pressões estão aumentando. A assessoria de Biden já deixou claro que os Estados Unidos não terão nenhum problema em impor retaliações ao Brasil. E, do lado dos chineses, também é preciso cuidado. As tensões entre Estados Unidos e China voltaram a crescer, e o tom não é nada conciliatório. Temos um mundo complicado pela frente.

No campo comercial, o que seria um sinal positivo do novo chanceler?

Uma sinalização muito importante seria se o ministro se dedicasse a uma costura diplomática para o acordo Mercosul-União Europeia, que já está negociado, mas precisa de atenção. Às vezes fica-se com a impressão até de que o acordo parou, mas não é assim. Agora é preciso detalhar o capítulo do meio ambiente, e seria importante fazer essa costura – não com os franceses, que têm outros interesses –, mas com países que valorizam esse acordo, como Alemanha, Portugal, Espanha, e mesmo a Itália. E criar um ambiente favorável para a negociação andar. Este ano Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, e o primeiro-ministro português António Costa já demonstrou simpatia pelo Brasil, já declarou intenção de levar o acordo adiante. Acho que uma ação do ministro nesse sentido seria relevante.

Claro que o Itamaraty não tem como fazer isso sozinho, porque espelha as políticas do governo, precisa do respaldo do Executivo. Mas pode ter habilidade diplomática para conduzir essa negociação, dizer que está disposto a conversar, convencer a outra parte. Estar empenhado em fazer isso e não entrar logo em conflito, como era o estilo do ex-chanceler, seria um ganho. O mesmo se pode dizer da relação do Brasil com a China. É preciso saber ouvir, negociar. É para isso que os diplomatas são treinados.

Quais desafios identifica para as exportações brasileiras, levando em conta os efeitos da pandemia no comércio global?

Continuaremos com nossa pauta concentrada em commodities, não retrocederemos nisso, mesmo porque a China é quem estará crescendo mais. Mas é preciso levar em conta que essa pauta de commodities é cada vez mais intensiva em pesquisa e desenvolvimento. A agropecuária é estreitamente relacionada com temas ambientais, e nesse campo o monitoramento é grande, com normas fitossanitárias e ambientais cada vez mais restritas. Esse talvez não seja um desafio para os grandes produtores, que acompanham e cumprem essas demandas. Mas quem acompanha o setor observa que se está sancionando o aumento da ilegalidade no campo, o que envolve desmatamento. E os estrangeiros olham muito para isso. Com as atuais tecnologias, não há como esconder isso, o monitoramento é mais forte. Portanto, temos que entender que nosso comércio é sensível, relaciona-se diretamente com recursos naturais, portanto, à questão climática. E, com a pandemia, o tema ambiental ganhou ainda mais força. Não cuidar disso, impedir que a ilegalidade aconteça, é um desafio que temos que levar a sério.

Os outros desafios são os que conhecemos, de transformação produtiva do país para melhorar nossa produtividade. O governo tem abaixado as tarifas que pode, com a ideia de reduzir custos de produção. Mas a forma como isso tem sido feito é confusa, pois barateou-se bens de capital, mas não os insumos, e os industriais reclamam. Isso é reflexo da falta de um programa. Uma das bandeiras desse governo era a reforma tarifária, mas como não se tem conseguido emplacar isso, a coisa acontece meio recortada, embora a Secretaria de Comércio Exterior continue apostando em que conseguirão faze-la. Por isso, inclusive, tem se dedicado a negociar vários acordos comerciais, como com Canadá e Coreia do Sul, pois é uma forma de liberalização tarifária mais a longo prazo. Outro exemplo se dá no âmbito do Mercosul. Não adianta defender a flexibilização da Tarifa Externa Comum sem ter uma proposta clara de qual reforma se pretende fazer. Não sei se essa mudança seria politicamente viável, mas é um desafio para o qual é preciso um objetivo claro.

Recuperar as relações com a América do Sul, inclusive, seria algo importante para o Brasil. Com ou sem acordo, sempre demos importância à região, e agora não deveria ser diferente. É um mercado importante para o país. Frente ao esforço conjunto no combate à pandemia que vemos em outras regiões, como na África, fico impressionada como aqui não houve nada. E a força do Brasil é importante para que isso aconteça no continente. Qualquer analista estrangeiro olha para o Brasil dentro de um contexto. E nosso contexto é a América do Sul.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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