Correlação entre infraestrutura tecnológica e desempenho no Enem em 2019 ilustra desafios para estudantes da rede pública trazidos pela pandemia

Janaína Feijó, pesquisadora do FGV IBRE

Por Cláudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O período de fechamento de escolas como medida de contenção do contágio de Covid-19, que no Brasil foi um dos mais longos, penalizou duplamente os alunos da rede pública de ensino. De um lado, pela falta de infraestrutura e de preparo das escolas para ofertar aulas remotas. De outro, pela dificuldade de acesso, pelos estudantes, às tecnologias necessárias para participar das atividades em condições adequadas. “Para o Brasil, onde os diferenciais de desempenho entre alunos do ensino público e privado já eram altos, a tendência é de que haja um distanciamento ainda maior no resultado das próximas avaliações”, diz Janaína Feijó, economista cearense que entrou para a equipe da pesquisa aplicada do FGV IBRE em julho.

Os exemplos dessa Belíndia educacional são fartos. Janaína cita o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), que mede o nível educacional de alunos de 15 anos em leitura, matemática e ciências. “Em 2018, na prova de literatura, enquanto as notas dos estudantes de escolas privadas se equiparam às de estudantes da Suécia, Nova Zelândia e Estados Unidos, o desempenho dos alunos da rede pública se assemelhou os de Albânia, Argentina e Peru”, diz, ilustrando uma discrepância de resultados que coloca o primeiro grupo entre os 20 países com melhor resultado, e o segundo, entre os 20 piores, de um total de 79. 

Dentro da miríade de impactos que a pandemia trouxe para o sistema de ensino, um dos focos de análise de Janaína é o desempenho dos estudantes que estão concluindo o ensino médio e buscam entrar para o ensino superior. Ela ressalta que, apesar de os microdados do Enem de 2020 ainda não estarem disponíveis para uma avaliação mais detalhada de seus resultados – e os efeitos de meses de escolas fechadas e ensino online –, o simples fato de o número de inscritos para o Enem 2021 ser o menor desde 2005 já pode ser indício de que os estudantes da rede pública – que em 2019 representaram 85% dos 1,46 milhão de candidatos – tenham se sentido despreparados e desmotivados. “Levando em conta que as escolas particulares se adaptaram mais rapidamente ao ensino remoto e aceleraram, quando liberadas, a volta às aulas presenciais como opção, é muito provável que haja uma piora na comparação entre o resultado dos alunos de ambas as redes”, diz. 

Desempenho no Enem de 2019 entre estudantes que estavam  finalizando o 3° ano do Ensino Médio naquele ano


Fonte: Microdados Enem/Inep. Elaboração de Janaina Feijó.

Para ilustrar esse horizonte de desafios dos alunos da rede pública, Janaína realizou um exercício no qual comparou as notas dos estudantes em provas do Enem realizadas antes da pandemia com a infraestrutura tecnológica que declaravam ter disponíveis em seus domicílios. A correlação não poderia ser mais clara. No Enem de 2019, o último antes do choque sanitário, estudantes do ensino público com um computador no domicílio, por exemplo, tiveram notas até 64 pontos mais altas do que os que declararam não o ter. “Um dos elementos mais preocupantes desse levantamento foi constatar que mais da metade desses alunos não contava computador em casa”, diz. A maior diferença entre os dois grupos se deu nas notas de redação. O acesso a computador no domicílio também fez diferença entre alunos do setor privado, mas em qualquer cenário seu desempenho continua bem à frente em relação aos estudantes da rede pública.

Pontuação média dos estudantes por quantidade de computadores no domicílio
Estudantes que estavam finalizando o 3° ano do Ensino Médio em 2019 e fizeram o Enem nesse ano


Fonte: Microdados Enem/Inep. Elaboração de Janaína Feijó. Foram considerados apenas os estudantes que responderam à pergunta e identificaram o tipo de escola em que estudavam.

 

Presença de celulares nos domicílios de estudantes que fizeram Enem em 2019 e finalizavam o  3° ano do Ensino Médio naquele ano


Fonte: Microdados Enem/Inep. Elaboração de Janaína Feijó. Foram considerados apenas os estudantes que responderam à pergunta e identificaram o tipo de escola em que estudavam.

Janaína ressalta que o acesso a infraestrutura tecnológica – da qual também faz parte o celular e a conexão à internet – em geral está diretamente relacionado a outros elementos que interferem positivamente no desempenho escolar, condicionados a uma melhor situação socioeconômica. “É importante destacar que características como a escolaridade dos pais, as trocas que as crianças e jovens estabelecem com colegas e professores, o ambiente em que são criados também fazem diferença em seu aprendizado”, lembra. Apesar de reconhecer a necessidade de políticas que ampliem a inclusão tecnológica de alunos e amplie a infraestrutura das escolas para melhor explorar as potencialidades do ensino digital, a pesquisadora defende que, no momento, o mais importante para mitigar os efeitos negativos do isolamento no desempenho educacional desses jovens é o retorno às aulas 100% presencial. “O sistema público de ensino ainda tem muitos desafios a superar até implementar um ensino híbrido de qualidade”, diz. “E estamos falando de jovens que, na falta de uma oferta adequada de ensino, mudam suas perspectivas de futuro”, afirma, lembrando que o impacto da pandemia no mercado de trabalho também leva parte desse grupo a abandonar os estudos em busca de alguma atividade remunerada para compensar a perda de renda da família. “Ou, ainda mais grave, a ampliar o contingente de nem-nem (como são conhecidos os que nem trabalham, nem estudam), que de acordo à PNAD do IBGE vem mostrando considerável aumento”, completa. No final de 2020, de acordo à consultoria iDados, os nem-nem representavam 25,5% dos jovens de 15 a 29 anos do país.

 


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