Contrapartidas fiscais para aprovação do auxílio são necessárias, mas não se deve correr o risco de mudanças de afogadilho, defendem especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A gravidade da segunda onda de Covid-19 no Brasil – que marcou o maior número de mortes dia 25 de fevereiro, véspera de completar um ano do registro do primeiro contágio – não deixa dúvidas sobre a necessidade de medidas de isolamento e de uma nova rodada de auxílio emergencial para amparar a camada mais pobre da população que ainda não conseguiu recuperar sua fonte de renda. A série de medidas fiscais que foram colocadas na PEC emergencial que deverá destravar o auxílio, entretanto, foi criticada pelos especialistas que participaram do webinar Novo Pico de Pobreza e o Auxílio Emergencial, promovido pelo FGV IBRE em parceria com a Folha de S. Paulo, moderado por Fernando Canzian, repórter especial do jornal.

Contrapartidas do lado dos gastos que indiquem responsabilidade fiscal frente à abertura de crédito extraordinário para financiar o auxílio são imprescindíveis, como apontou Fernando Veloso, pesquisador do FGV IBRE. Em sua exposição, Veloso ressaltou que uma renovação das transferências que não seja compatível com a disciplina nos gastos poderá anular o efeito do auxílio – refletindo-se, por exemplo, em alta da inflação, que reduz poder de compra. “Mas o governo enviou ao Congresso uma proposta complexa, cheia de prós e contras”, ressaltou – entre eles, a desvinculação de gastos para educação e saúde, que motivaram a revisão do texto e o adiamento da votação para o dia 3 de março. “É preciso ter um programa mais claro, sem tantos pontos polêmicos”, defendeu, lembrando que o debate sobre uma PEC emergencial está à mesa desde o ano passado, assim como o projeto de reforma administrativa, e que não era necessária uma aprovação de afogadilho.

Tanto Veloso quanto Naercio Menezes (Insper) e Daniel Duque, também pesquisador do FGV IBRE, afirmaram que a nova fase de auxílio precisa ser mais focada, mais barata e sem as irregularidades observadas na primeira etapa. Veloso destacou o balanço final da fiscalização do auxílio recentemente divulgado pelo TCU que indica que, dos R$ 293 bilhões destinados ao benefício, R$ 54 bi, ou 18%, podem ter sido pagamentos indevidos. Duque, por sua vez, lembrou que a primeira fase do benefício atingiu cerca de 65 milhões de pessoas, chegando a representar quase 10% de toda a massa de rendimentos da população. “Apesar de 90% da população entre os 10% mais pobres ter garantido ao menos um beneficiário do auxílio, ela também chegou à camada mais rica, que não era foco do programa”, disse.

Levantamento de Naércio Menezes aponta que, mesmo sem a volta da pandemia com a força observada este ano, o nível de pobreza estaria aumentando, mas a reação do mercado de trabalho mitigava parte desse movimento. No acompanhamento feito por ele de uma amostra de famílias ao longo dos últimos anos com base na PNAD Contínua e na PNAD Covid, a participação no mercado de trabalho, que registrava uma média de 63% em 2018 e 2019 e despencou para cerca de 55% em maio, havia ganhado alguns pontos e em novembro chegava a 58%. “Mas, com o aumento das medidas de isolamento, teremos uma nova piora do mercado de trabalho”, afirmou.

Para Duque, uma forma de tornar o auxílio mais econômico e eficiente seria dar tratamento diferenciado aos beneficiários do Bolsa Família e do auxílio. Pela proposta de Duque, ao invés de trocar a transferência do Bolsa Família pela do auxílio, os usuários do Bolsa Família manteriam-se no programa e receberiam R$ 50 adicionais por pessoa, o que representaria um gasto mensal de R$ 2,3 bilhões, contra R$ 12,6 bilhões gastos com esse público na primeira fase do programa.

Já Veloso e Menezes concentraram sua defesa na revisão do Bolsa Família, para que uma nova política esteja pronta para funcionar na saída dessa nova etapa do auxílio. Menezes defendeu essa necessidade mostrando que o Bolsa Família, antes mesmo da pandemia, já deixava de fora 35% das famílias elegíveis, e que em 2019 o benefício médio de R$ 190 foi suficiente para tirar apenas 15% dos beneficiários da pobreza. Para esse exercício, Menezes considera um cálculo de linha de pobreza que leva em conta as diferenças regionais de custo de vida, as quais, defende, deveriam ser levadas em conta nas políticas governamentais. “Enquanto na zona rural de Rondônia a linha de pobreza é de R$ 154, na região metropolitana do Rio de Janeiro ela sobre para R$ 505. É uma diferença relevante”, exemplificou.

O pesquisador do Insper defende uma mudança do Bolsa Família focada no auxílio às crianças. “Apesar do problema fiscal que temos hoje, garantir renda às famílias com crianças ajuda as finanças públicas no longo prazo. Pois, quando adultas, elas vão trabalhar mais, ser mais produtivas, pagar mais impostos, e não estarão dependentes de transferências. Ou seja, esse dinheiro volta para a sociedade”, diz. Em uma das simulações feitas por Menezes, uma transferência de R$ 800 por criança do Bolsa Família custaria R$ 68 bilhões ao ano e pobreza caria de 25% para 11%. “Acho que é meta não muito difícil de ser atingida, e tiraria 5 milhões de crianças da pobreza”, defendeu. Menezes afirma que essa alteração poderia ser feita sem a necessidade de PEC. “São propostas administrativas de mudança de valor, cobertura, forma de focalização, que poderiam ser feitas mais facilmente”, disse. “Poderia-se usar o aplicativo criado para o auxílio, com as pessoas atualizando informações de renda, ativos, filhos. E, quando a pandemia passar, se faria uma checagem dos dados”, sugeriu Menezes.

Veloso, por sua vez, apresentou a proposta que desenvolveu junto a outros pesquisadores para o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), incorporada no projeto de Lei de Responsabilidade Social apresentado no ano passado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).  “Nosso objetivo é contemplar não apenas a melhoria do Bolsa Família, mas também os informais”, disse, ressaltando que a pandemia exacerbou a realidade de desproteção dessa camada de trabalhadores, bem como dos formais de baixa renda. “Propomos um seguro-poupança formado com o depósito de até 15% da renda de trabalhadores formais e informais cuja renda seja muito variável. É importante que esse seguro tenha portabilidade, e permaneça com a pessoa caso passe a ter um emprego com carteira assinada”, diz. A proposta da Lei de Responsabilidade Social também contempla uma política diferenciada para a educação, que inclui o estímulo à conclusão do ensino médio, no qual se registra alto índice de evasão escolar. “Propomos uma poupança, formada por valores que vão sendo depositados na conta do estudante deste início do ensino fundamental, e que ele pode sacar quando se forma. E também contemplamos uma expansão do programa Criança Feliz, pois concordamos com Naercio de que a preocupação com a primeira infância é primordial.”

 

Reveja o webinar Novo Pico de Pobreza e o Auxílio Emergencial

 


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