Brasil 2023: “Antes de discutir ideias, temos que reequilibrar o jogo político”

Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua perspectiva para o campo fiscal para 2022, após a aprovação da PEC dos Precatórios e do Orçamento?

O ano de 2021 foi bastante idiossincrático. Ele começa com uma grande surpresa fiscal, a dívida cai bem além do esperado, e podemos terminar o ano com um superávit primário. Isso é positivo, mas houve, principalmente, no segundo semestre, eventos que acabam por contaminar a percepção sobre a realidade fiscal e a perspectiva para 2022.

Há uma fragmentação do processo orçamentário e mudanças em políticas públicas que fragilizam a política fiscal e reduzem a produtividade do gasto. Isso ficou bem claro ao longo da discussão do orçamento aprovado nesta semana, e também na discussão do imposto de renda e do Auxílio Brasil.

A aprovação do orçamento tende a reduzir a incerteza fiscal, mas tudo leva a crer que novas pressões surgirão, como a questão dos servidores, que gerou uma tensão. A eleição sempre traz dúvidas, seja pelo o que pode ocorrer ao longo do ano ou em relação à própria perspectiva de mudança de governo.

Como, na sua opinião, os candidatos à Presidência deverão lidar com questões fiscais adicionais ao teto de gastos, advindas das votações realizadas neste final de ano?

Entendo que são questões que permanecem em aberto. Evidentemente, o Auxílio Brasil tem um lado bom que é ampliar a assistência social, mas tem um lado questionável que é o de gerar fragmentação de programas dentro dele, o que tende a reduzir a eficácia da política. Além de trazer um cunho mais populista para certas medidas, que ficam mais expostas à discricionariedade política. Seria desejável que isso fosse revisto em um próximo governo. Há também questões micro que têm de ser reavaliadas à frente, como a do Prouni (o presidente Bolsonaro editou uma medida provisória eliminando a exigência de o aluno ter cursado ensino médio em escola pública para se beneficiar do programa). Estudar em uma escola pública caracteriza um importante preditor de renda, que colabora para a eficácia do programa.

E tem a questão dos precatórios. Não há um diagnóstico completo sobre por que o valor dos precatórios está crescendo. Algumas informações da Advocacia Geral da União (AGU) indicam que ele pode voltar a cair a partir de 2024. Se isso acontecer, seu impacto pode ser atenuado, os precatórios voltam a caber no Orçamento e aí se pode retornar ao rito tradicional de pagamentos, sem grandes traumas. Mas, se continuar crescendo, a tendência é de que surja um esqueleto. Além disso, é um tema que pode gerar insegurança jurídica, pois não se sabe como esse pagamento será priorizado no decorrer dos anos, se surgirão questões de inconstitucionalidade e como serão resolvidas. Como o presidente que assumir o governo deve agir? Tudo depende de como esse tema evoluir e se, dentro do espaço político que tiver, valerá a pena retomar esse assunto.

Os governos têm espaço limitado sobre o que podem fazer. Criado por uma combinação entre suas próprias prioridades, das condições de contorno do país dadas pela conjuntura econômica e a capacidade política de realização. Há vários temas que já congestionam a agenda - definições sobre o teto de gastos, se deseja alterá-lo; como combinar essa mudança com a agenda de reformas. Se for um governo de esquerda, provavelmente reavaliar as mudanças do Bolsa Família / Auxílio Brasil será um tema importante; para um governo de direita, talvez não seja prioridade.

Levando em conta que o processo inflacionário tende a desacelerar em 2022, e foi confirmado o Auxílio Brasil em R$ 400, com aumento do grupo de beneficiários, considera que será um contexto suficiente para recuperar a popularidade do presidente?

O que eu posso dizer é que o aumento do benefício para R$ 400 mais do que repõe a inflação. Isso é algo que especialistas da área social sempre reivindicaram porque, a despeito do Bolsa Família ser muito eficiente, sempre se trabalhou com linhas de pobreza de países muito pobres, e o Brasil não pertence a esse conjunto. Então, o aumento real do benefício tem uma motivação relevante, isso está sendo feito, e é importante. Já sobre a repercussão política desse aumento, eu tenho dúvidas. O governo Bolsonaro passou a maior parte de seu período ampliando bastante a rede de assistência social em função da pandemia. Então, a despeito do aumento do valor do agora Auxílio Brasil, está se reduzindo o gasto com assistência social já que o novo programa possui um público-alvo menor que o do auxílio emergencial. Reduziu-se o escopo da política, que foi mais generosa e abrangente na maior parte de seu mandato até aqui, em função da emergência da pandemia e mesmo assim o governo Bolsonaro perdeu apoio. Então, para mim, não é claro que a reformulação do Bolsa Família em termos de valores seja um catalisador de apoio popular. O resultado daqui para frente será algo a se avaliar.

Com a criação do Auxílio Brasil, o que deveria entrar no debate presidencial em se tratando do fortalecimento do sistema de proteção social brasileiro, especialmente quanto ao seu financiamento?

O que estamos vendo nos últimos dois anos é que a coalizão política que o governo montou não privilegia ou favorece esse tipo de discussão. Independentemente da proposta de financiamento da seguridade social, se com aumento da progressividade dos impostos, ou com otimização dos gastos já presentes dentro do Orçamento, acho que a questão preliminar é ter uma candidatura que consiga coordenar uma coalizão política capaz de enfrentar os problemas do país. Que se preocupe, por exemplo, em aumentar a eficácia das políticas públicas, e não revertê-las ao sabor do momento, como vemos agora. Existem várias propostas meritórias sobre o tema. A questão é que falta uma coalizão capaz de aprová-las, seja qual for.

O mesmo acontece com a reforma tributária. Acho que, antes de discutir ideias, temos que reequilibrar o jogo político. Hoje a política econômica está sendo comandada pelo Centrão. Nos episódios em que conseguimos promover maior estabilidade econômica, esse grupo político não teve tanto poder. Quando o conseguiu, em 2015/16, houve crise. E agora, que estamos saindo da pandemia sem agenda, convivendo com uma estagnação econômica depois de uma recuperação razoável. Essa é a primeira questão. Conseguindo montar um grupo político que mostre que a política faz parte da solução e não do problema, aí fica mais fácil discutir as agendas que esse grupo consegue coordenar e ser capaz de promover.

As necessidades, já conhecemos: uma ampliação do programa assistencial financiado de forma adequada; uma reforma tributária que gere mais eficiência econômica e resulte em um sistema mais progressivo; e uma reforma administrativa coerente, que fomente o profissionalismo e a produtividade no serviço público. E avançar na agenda de investimentos, abertura comercial bem como reforçar as instituições governamentais, que passaram por um período de fragilização nos últimos anos.

Quais deverão ser as preocupações dos candidatos à Presidência para reativar a economia, cuja estimativa para 2022 é de andar de lado?

Fechamos este ano com um acúmulo de muitos fatores negativos, alguns que o governo controla, outros que não. Sempre que isso acontece, existe um ganho de curto prazo potencial, que surge quando os choques negativos se dissipam. No caso da energia elétrica, a melhora do regime de chuvas deve retirar pressão da inflação no ano que vem. Os combustíveis também já apontam para uma queda de preços. E, no caso dos alimentos, a estimativa é de safras melhores em 2022. Esses fatores também podem evoluir para resultar em uma reversão da contração monetária mais à frente, ainda que períodos eleitorais tendem a gerar efeitos no câmbio. Mas, afora a incerteza política, vários fatores podem coincidir e gerar uma sensação de melhoria e alívio no curto prazo.

Além desse cenário que pode ser mais positivo, olhando para o estrutural, o importante é que o próximo presidente priorize temas com impacto relevante sobre a economia. Especialmente considerando o primeiro ano de governo. Se avançar por esse caminho, criará uma visão positiva de país, com mais perspectiva, o que é fundamental no curto prazo para essa reativação que menciona. Com um pouco mais de racionalidade, as coisas melhoram. Passamos estes últimos anos com o governo mais focado em amplificar crises - como a questão do isolamento para combater a pandemia, a vacinação - do que atuando para contê-las. Foram questões que criaram um conflito com a sociedade. Mas se tem um governo que atua para minimizar o impacto de crises, e isso é percebido pelos agentes econômicos e pela população, isso ajudará a recuperar a confiança nas instituições de governo, o que será positivo para o país como um todo.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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