“Biden trará mais desafios para a projeção externa de poder chinesa do que Trump”

Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia a reação econômica do governo chinês ao choque de Covid-19? Algum ponto de comparação com a crise de 2008?

A estratégia desta última é moldada pelos efeitos colaterais da primeira. Lá em 2008/09, o verbete de dicionário foi “pau na máquina”. Expandiu-se monetário, fiscal, obras públicas, em um programa exclusivamente focado no ciclo de investimentos. Isso levou a China a crescer muito rápido, a puxar os preços de commodities no mundo inteiro principalmente de 2010 a 2012, criando efeitos colaterais importantes, sendo o principal deles um crescimento relevante do endividamento, das empresas e do governo.

Com o passar dos anos, foi-se amadurecendo a percepção de que o que foi feito foi importante, mas que os efeitos colaterais se transformaram em questões de memória mais longa. Houve então uma evolução do pensamento do politburo e do comitê do partido de que esses repiques de curto prazo muito intensos às custas do futuro não fazem muito sentido. Para a China, a Covid-19 não se tornou um evento das mesmas proporções de 2008/09. E em diversos momentos em que o modelo chegou perto da ruptura a atuação não foi tão intensa como a de 2008/09, isso nunca mais aconteceu, e não parece que irá acontecer de novo. 

Especificamente no evento da pandemia, a China tem uma abordagem bem diferente dos outros países. Ela efetivamente faz muito menos: deixa a política fiscal de prontidão - a autorização em termos de primário foi algo como 3 pontos percentuais do PIB -, mas na prática nem se chegou a usar tudo que se autorizou. E priorizou manter as condições financeiras bastante acomodatícias, injetando muita liquidez no sistema interbancário, injetando muita liquidez nas empresas, abrindo linhas de crédito de médio prazo, mantendo o sistema irrigado. E oferecendo uma ponte especialmente para o setor corporativo. Ao contrário de outros países, a China não fez transferência de renda para a população. Esta teve que atravessar ao menos o início do choque - que foi mais curto na China que em outros lugares - usando sua poupança acumulada. O que faz muito sentido, porque eles tinham muita poupança, não havia essa necessidade tão dramática de fazer a ponte como em outros países, porque o setor privado, especialmente as pessoas, tinham de onde tirar recursos. 

Ou seja, o que temos são estratégias muito distintas, com uma retomada de velocidade distinta, mas cujo perfil é meio homogêneo no mundo. A China foi para um regime sanitário de supressão do vírus promovendo isolamento, redução de contato pessoal, uso de máscara, testagem verdadeiramente em massa, e com isso conseguiram conter a segunda onda em termos regionais relativamente bem. Houve outros focos de Covid-19 na China, mas não algo disseminado como em outros países territorialmente grandes como Estados Unidos, Rússia e Brasil, e com isso conseguiram uma recuperação econômica mais rápida. Se a China crescer entre 6,2% e 6,4% no quarto trimestre, ela fará o V perfeito ainda em 2020, recuperando todo o impacto da pandemia no ano corrente.

No mundo, a tendência de recuperação da economia não tem sido acompanhada pela recuperação do emprego, que reage em ritmo inferior. Isso também acontece na China? 

A taxa de desemprego na China subiu, especialmente no início da pandemia. Mas o último dado disponível indica que em novembro o desemprego urbano também voltou para o nível pré-pandemia, na casa dos 5,2%, depois de ter saltado para 6,2% em fevereiro - um aumento significativo, dado que essa taxa na China tem pouca variância. Há poucos detalhes dos dados do NBS (agência de estatísticas do governo), como a pesquisa é feita e sua abrangência, mas eles também indicam uma recuperação do emprego também neste ano.    

Com base nessa velocidade de recuperação, que diretrizes guiarão a política econômica chinesa em 2021? 

No ano que vem o país contará com um efeito base muito favorável que permitirá, sem colocar nenhuma lenha na fogueira, crescer em torno de 9%. Mas já se observa a tendência de volta à estratégia de ajustamento estrutural, como na limitação da aquisição de dívidas por incorporadoras que já possuem alto grau de endividamento. Isso começou a acontecer já em setembro deste ano. A recente rodada de default que se observa na China vai além de empresas estatais, chegando em algumas  empresas privadas, e o governo, em princípio, está de braços cruzados. Está injetando liquidez no mercado interbancário, mas não está salvando ninguém. Existem analistas que apontam isso como uma inação do governo que pode fazer mal ao país. Minha opinião é de que ele está usando esse evento para acelerar o processo de limpeza dos balanços das empresas que são ruins. Claro que tudo é meio controlado, e se a piora começar a se generalizar, o governo vai agir. Mas se essa quebradeira sinalizar para as pessoas que não é farra, que não é qualquer empresa que ficará acima da marca d’água, isso se enquadra bem na estratégia de reforma pelo lado da oferta. Vejo isso como uma indicação de que as diretrizes de reforma estrutural foram retomadas. O último plano quinquenal - que tem menos de dois meses, do qual os detalhes saberemos na plenária do partido no fim de março - também apontam nessa direção de reforma estrutural, de modelo de dupla circulação, que na prática se traduz em estimular o mercado doméstico, a demand side reform. Essa é a nova diretriz para a qual devemos olhar. 

No ano que vem o partido comunista chinês (PCC) completará 100 anos. Que mensagem acha que buscarão marcar nessa comemoração?

Acho que a narrativa pode ser construída a partir de três focos: de poder econômico, filosófico e militar -  neste último caso, não global, mas regional. No campo econômico, há vários exemplos que podem sustentar a narrativa de que a ascensão chinesa nos últimos 50 anos seja o maior programa de enriquecimento da população já feito na história da humanidade. Basta pegar uma imagem dos arredores de Xangai de 50 anos atrás e identificar um arrozal onde hoje há arranha-céus. Comparar o trânsito de Beijing das bicicletas da antigamente com o que existe hoje. Você sai de um país pobre, agrário e totalmente fragmentado para uma China  urbana, moderna, rica e que projeta poder no mundo. Isso remete à ideia tradicional de resolver o que consideram um grande desafio, de o país do meio, que é a tradução literal para China, ter perdido a centralidade do mundo, retomando agora essa centralidade. Para os chineses, esse desafio continua. Claramente Xi-Jinping tem um projeto grande para a China, que só começou. 

Que desafios o país poderá encontrar em 2021?

Acho que, quanto à questão doméstica, será convencer os próprios chineses e analistas de dentro e fora da China de que a desaceleração do crescimento pode acontecer de forma ordenada. A tendência para o próximo ano é uma desaceleração a cada trimestre, de perda gradual de ritmo. Isso pode assustar, mas não deveria, pois é perfeitamente alinhado com as estratégias do governo. 

No campo internacional, o terreno será mais difícil. Biden trará mais desafios para a projeção externa de poder chinesa do que Trump. A contraposição de Trump era estridente, portanto fácil de desqualificar. A ponto de, nos últimos anos, a grande promotora do multilateralismo - ano menos no discurso - ter sido a China. A política externa dos democratas deverá mais inteligente em relação ao país, e a grande batalha do ano que vem é a tech war em torno do 5G, que demandará dos chineses poder de convencimento e cooptação de parceiros/clientes. Estamos avançando, de forma muito mais sutil do que foi na Guerra Fria,para o que chamo de cortina de seda, com a definição de dois blocos bem claros de esfera de influência. Tem uma característica bem marcada, que é a da projeção de poder chinesa se fixar nos países em desenvolvimento, com mais contraposição nos países desenvolvidos. Isso inclui mais recentemente a Austrália, que tem levantado o tom em relação à China. Já para Coreia do Sul, Japão, mesmo que eles não gostem da ideia, é business; eles precisam da presença chinesa, seja na ponta ou no meio da cadeia. 

Como a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), acordo assinado pela China com mais 14 países da Ásia e Oceania, entra nessa equação?

Ela é parte dessa dinâmica. Veja, um brutal erro estratégico da administração Trump foi retirar os Estados Unidos do Tratado de Associação Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) de forma atabalhoada, deixando o Pacífico para a China. O que ela faz agora é organizar uma estrutura econômica-ideológica de projeção de poder, colocando-se no topo da cadeia. Mas, como disse, a administração Biden trará o tema de forma diferente. Com uma estratégia de contraposição aberta e insultos via Twitter, Trump acabava afastando seus  aliados. Biden deverá fazer exatamente o contrário, seguindo mais a linha da administração de Barack Obama. As pessoas não dão tanto valor, mas o meio de campo de Obama na política externa foi muito bem feito. 

A diretriz de mudança do padrão de crescimento chinês vem de 2015. Em que o novo normal provocado pela pandemia deverá mudar o novo normal desejado pelo governo chinês?

Acho que podemos fazer essa análise olhando para a Ásia como um todo. Dadas as suas características de composição de PIB, de adoção de novas tecnologias, cultural, essa região tende a se sair melhor desse evento. O que é necessário para minimizar os efeitos da pandemia, a Ásia tem - diferentemente dos latino-americanos, que sofrem com problemas de produtividade, educação, em adoção tecnológica. Recente relatório da OCDE corrobora esse diagnóstico. Ao fazer estimativas de crescimento comparando o quarto trimestre de 2021 com o mesmo período de 2019, você verá que nas primeiras colocações só dá Ásia. Isso tem implicações para o mercado financeiro, na alocação de investimento, no fortalecimento de moedas. Para mim, é inequívoco que a região vencedora será a Ásia, e a perdedora será a América Latina.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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