“Apesar da agenda de costumes, não temos evidência de que o voto tenha deixado de ser determinado pelo bolso do eleitor”

Maria Hermínia Tavares – cientista política, pesquisadora do Cebrap

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia a movimentação político-partidária desde a decisão do ministro do STF Edson Fachin de anular as condenações de Lula na Lava Jato, o que a princípio o torna novamente elegível?

Tínhamos um jogo de segunda divisão, e daí entrou uma liderança política importante – qualquer que seja avaliação que se tenha dele, não importa – para dizer “estou aqui”. Muita coisa ainda pode acontecer, eleição depende sempre dos competidores, pois os eleitores fazem escolhas concretas. É muito cedo para dizer qualquer coisa a respeito de como será, mas acho que o panorama já mudou, sim.

Tenho a impressão que antes desse episódio Lula havia duas ilusões: a da esquerda, de que podia ganhar sozinha, quando jamais ganhou sozinha no país. Aliás, ela sempre ganhou no segundo turno, com apoio de forças que não eram do seu campo, fazendo um movimento para o centro. E a ilusão da centro-direita, que vivia um sonho de uma noite de verão de achar que o centro pode ganhar sem conversar com a esquerda. A centro-direita ganhou quando a direita veio com ele. E, assim mesmo, faz tempo. A última foi com Fernando Henrique Cardoso. Então, para o centro também ficou claro que não é esse passeio. Lógico que Bolsonaro hoje tem suas fragilidades. Mas quem está no governo sempre tem vantagem. A reeleição é a norma nos presidencialismos que a permitem. Para o presidente que está no cargo, perder não é comum. Não vamos nos enganar. O presidente é sempre um candidato forte.

Mas aí Lula, que além de ter o peso eleitoral que tem – ainda que seja difícil de mensurá-lo depois de tanto tempo –, aponta que, se esquerda quiser ganhar, tem que fazer o movimento que ele fez em 2002, de conversar com quem não é de esquerda. E fez um discurso para a nação – com as qualidade e defeitos de Lula. Apontou que nosso principal problema hoje é a pandemia e que o governo não tem feito nada para nos tirar dessa enorme tragédia em que estamos metidos. Fez um discurso moderado, aberto, não raivoso, dizendo que não tem mágoa, e que temos que de alguma maneira conversar de forma mais ampla para sair dessa. Colocou-se como uma liderança nacional, obrigando o presidente a aparecer em rede sinalizando que a terra é redonda, com um globo em sua mesa, e a usar máscara. Então, surgiu uma figura nacional capaz de dizer: o rumo está errado. Vários governadores, lideranças já estavam dizendo isso, mas o fez com uma força que ele ainda tem. Quanto disso pode se traduzir em votos, não sabemos. Nem como o processo eleitoral vai caminhar. Isso depende, em primeiro lugar, de quanto apoio ao Bolsonaro resistirá. Todas as pesquisas mostram que há uma minoria que parece resiliente ao desastre sanitário e econômico. Isso pode mudar? Pode. Caso contrário, Bolsonaro é um candidato forte, e quem quer derrota-lo deve pensar bem em como fazê-lo.

As pesquisas apontam que a camada de eleitores em que o presidente mais mantém seu apoio é a de evangélicos. Quais elementos serão essenciais aos demais candidatos para atrair esse eleitor?

Precisamos pesquisar mais sobre eles. Basicamente, as lideranças evangélicas são governistas. Elas apoiaram todos os candidatos que ganharam. E têm seus interesses em competir no mercado religioso, onde têm sido bem-sucedidas nos últimos 30 anos, quando número de evangélicos cresceu enormemente. Até a chegada de Bolsonaro, essas lideranças se entenderam bem com todos os candidatos vitoriosos. Não sei qual será sua lealdade com respeito ao presidente caso ele perca força. Há que se destacar que Bolsonaro foi o candidato que mais diretamente falou a esse grupo. Mas se ele perder o apoio dos demais eleitores, será preciso observar o que acontecerá com as lideranças evangélicas grandes, que têm capacidade de arrastar eleitores talvez maior do que a igreja católica tem. Até porque a igreja católica faz parte da elite há muito tempo nesse país, joga o jogo da política diferente. Mas é verdade que, quando se olham os dados da eleição de 2018, observa-se que o núcleo duro do bolsonarismo era formado por evangélicos, homens brancos, do Sul, com renda e escolaridade de média para alta. Isso mudou um pouco, pois parece que eleitores de renda e escolaridade mais altas reduziram seu apoio a Bolsonaro. Mas ele não foi eleito só com esses votos, e de alguma maneira tem feito esforços para fidelizar o apoio do eleitorado religioso.
Agora, apesar da agenda de costumes, de comportamento, de valores, que é importante para esse grupo, não temos nenhuma evidência de que o voto tenha deixado de ser determinado basicamente pela questão do bolso – como é em praticamente todos os lugares do mundo. Especialmente em um país como o nosso, não há por que imaginar que o bolso não seja determinante para se ganhar uma eleição. Posso estar enganada, mas acho que esse fator continuará pesando. Tudo vai depender de quem se apresentar, e de que forma.

Considera que, se em 2022 tivermos a maior parte da população vacinada e a atividade dando sinais positivos de recuperação, gerando mais emprego, já será um panorama suficientemente positivo para Bolsonaro?

Talvez quem possa avaliar isso melhor são os economistas. Pelo que acompanho nos webinares promovidos pelo FGV IBRE, tendo a achar que as perspectivas não são tão brilhantes assim. O auxílio emergencial que é possível dar este ano não é da mesma monta que o do ano passado, quando o Brasil promoveu o maior programa de sustentação de renda da América Latina, sem comparação com qualquer outro país da região. E que, no caso de algumas famílias, mais do que compensou a perda de renda. Então, é difícil avaliar.

No fundo temos duas questões diferentes: qual o peso de uma melhoria econômica para favorecer o governo, e qual melhoria impacta na massa do eleitorado, já que programas de sustentação de renda não tenderão a ser, a menos que se resolva estourar de vez o caixa. Desse ponto de vista, vale lembrar que o Lula tem uma história boa para contar, já que a primeira década deste século foi de ouro para parte importante da população. Mas existe também a memória de quando isso acabou, na crise que começa no governo de Dilma Rousseff, e com a Lava-Jato. Não sabemos como eleitorado vai pesar isso.

Quando você olha os dados eleitorais, o PT, que é o maior partido de esquerda, começou a perder em 2016. E desde então tem perdido muito, nas duas eleições municipais e na nacional. Então, é muito cedo para se ter um diagnóstico. Mas tenho convicção de que é impossível, tanto para a esquerda quanto para o centro, ganharem sozinhos. Esse espaço de diálogo é complicado, mas no campo da esquerda Lula é a única liderança com mais projeção capaz de coordenar isso.

Mas dentro da esquerda temos, de um lado, Ciro Gomes (PDT-CE), que é importante no Nordeste e mantém uma posição irreconciliável com Lula, e de outro Guilherme Boulos (PSOL-SP), que defende a necessidade de alianças, mas não inclui o centro...

É um posicionamento primário, mas Lula mexeu nisso. Agora, como vão reagir, não sei. O PSOL teve um bom desempenho na cidade de São Paulo, ocupando um espaço minoritário do PT – desde que Fernando Haddad perdeu para João Dória (PSDB), o PT não desempenha bem em São Paulo. Mas não sei quanto desse movimento do PSOL foi circunstancial, e tampouco isso tem ossatura nacional.  Hoje há uma esquerda mais fragmentada porque o PT, apesar de ser o partido mais importante, não consegue mais subordinar mais os outros, que ganharam certa musculatura. Mais isso não muda o fato de que a esquerda não ganha sozinha. Tampouco a centro-direita, especialmente com o espaço ganho por Bolsonaro na extrema direita, e que tende a continuar.

Agora, há outras discussões complicadas para Lula. A começar pelo ponto de vista econômico, entre o que eles acham e dizem que podem fazer, mas não podem, dada a situação do país. Além de uma certa liberdade fiscal que o governo Lula não tem mais, e nenhum outro governo terá, outro elemento do discurso que fez na semana passada em São Bernardo do Campo foi o de um tom nacionalista à antiga.  A forma como tratou do tema da Petrobras deixou de lado uma questão importante que verificamos na sociedade brasileira nestes dois últimos anos de descalabro, que foi um avanço muito significativo da consciência ambiental, por várias frentes. As empresas passaram a entrar nesse campo, e a pressão internacional passou a vir não veio só dos governos, mas através de fundos de investimento. Essa já não é uma discussão circunscrita a especialistas, a opinião pública também mudou. E acho que isso é um tema difícil, que demanda uma esquerda mais moderna.

Outro tema que evoluiu muito e não pode ser deixado de lado por nenhum partido é o do racismo. Houve progressos nesse campo, de alguma forma resultado de políticas anteriores, como a de cotas nas universidades, que produziu um novo grupo de elite que é negro, que hoje está se posicionando na sociedade, na imprensa, e que não existia nessa dimensão no passado. Esses dois temas que mencionei ainda não vejo penetrarem no sistema político-partidário como um todo, à exceção de algumas legendas e de parlamentares mais jovens. No plano das lideranças, o discurso ainda é antigo. Isso dá certa tristeza. Na Europa e nos Estados Unidos, as lideranças estão se perguntando como reconstruir a economia em outro trilho, mais sustentável. E não vemos isso por aqui, ainda que na sociedade estejam acontecendo coisas importantes.

A decisão de Fachin que recuperou a elegibilidade de Lula também somou pontos negativos para a operação Lava Jato. Com a operação sedo questionada, qual será o peso do tema corrupção em 2022?

Esse é um tema que sempre pode ser mobilizado, e que na história brasileira foi mobilizado várias vezes, como nos anos 1950 contra Getulio Vargas, Carlos Lacerda; em 1964, como um dos elementos para criar coesão em torno do golpe. E agora aconteceu com uma utilização social forte, mas que hoje se encontra enfraquecido. Em 2018 essa mobilização política foi feita numa aliança, digamos assim, entre movimentos que apoiavam a Lava-Jato e Bolsonaro. Moro se associou ao presidente Bolsonaro, que por sua vez lida com questões como as que envolvem seus filhos, as rachadinhas, o que o deixa em condição mais difícil para explorar o tema corrupção politicamente. E não consigo ver qual força política possa dar cara para isso. Para Bolsonaro, do ponto de vista eleitoral, será muito mais fácil abraçar o discurso das armas, dos valores conservadores, do que o discurso da corrupção, porque agora ele não está propriamente bem equipado para isso.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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